Introdução
Maria Madalena é uma das figuras mais intrigantes e mal compreendidas do Novo Testamento. Ao longo dos séculos, sua identidade tem sido objeto de especulação, confusão e controvérsia. Uma das questões mais persistentes é se Maria Madalena e Maria de Betânia, irmã de Lázaro, eram a mesma pessoa. Essa conexão foi feita por Ellen White, uma proeminente líder religiosa do século XIX, em seu livro “O Desejado de Todas as Nações” [1]. No entanto, a maioria dos estudiosos bíblicos modernos discorda dessa interpretação, argumentando que Maria Madalena e Maria de Betânia eram indivíduos distintos. Neste artigo, examinaremos as evidências bíblicas e históricas relacionadas a essa questão e explicaremos por que a conexão feita por Ellen White é considerada incorreta pela erudição bíblica contemporânea.
Maria Madalena nos Evangelhos
Maria Madalena é mencionada por nome doze vezes nos evangelhos canônicos, mais do que a maioria dos apóstolos [2]. De acordo com os evangelhos, Jesus a purificou de “sete demônios” (Lucas 8:2). Ela foi uma das mulheres que acompanharam e apoiaram Jesus em seu ministério, esteve presente em sua crucificação, sepultamento e foi a primeira pessoa a vê-lo após sua ressurreição, segundo o Evangelho de João [3].
No entanto, os evangelhos não fornecem evidências de que Maria Madalena fosse irmã de Lázaro ou tivesse qualquer conexão com Betânia. De fato, Maria Madalena é consistentemente identificada como “Maria Madalena” ou “Maria, chamada Madalena”, indicando que ela era de Magdala, uma cidade na Galileia [4].
Maria de Betânia nos Evangelhos
Maria de Betânia, por outro lado, é mencionada várias vezes nos evangelhos em conexão com sua irmã Marta e seu irmão Lázaro. Eles viviam em Betânia, uma aldeia próxima a Jerusalém. No Evangelho de Lucas, Maria é introduzida como a irmã de Marta, que recebe Jesus em sua casa (Lucas 10:38-42). No Evangelho de João, Maria é mencionada no contexto da ressurreição de Lázaro (João 11) e é identificada como a mulher que ungiu os pés de Jesus com perfume (João 12:1-8).
É importante notar que, em nenhum momento, os evangelhos conectam diretamente Maria de Betânia a Maria Madalena ou sugerem que elas sejam a mesma pessoa [5]. Pelo contrário, elas são consistentemente apresentadas como indivíduos distintos com diferentes origens e papéis na vida e ministério de Jesus.
A interpretação de Ellen White
Em seu livro “O Desejado de Todas as Nações”, publicado em 1898, Ellen White fez uma conexão entre Maria Madalena e Maria de Betânia, sugerindo que eram a mesma pessoa. Ela escreveu:
“Maria Madalena foi a primeira a chegar ao sepulcro; e, vendo que a pedra fora removida, correu para contar aos discípulos e a Pedro. Entretanto, chegaram a outra Maria e Salomé. Uma luz resplandecia em torno do sepulcro, mas o corpo de Jesus não estava ali. Ao demorarem-se no lugar, viram que não estavam sós. Um jovem vestido de vestes resplandecentes achava-se sentado junto ao sepulcro. Era o anjo que removera a pedra. Dirigiu-se a elas com as palavras: ‘Não temais; pois eu sei que buscais a Jesus, que foi crucificado. Ele não está aqui, porque já ressuscitou, como havia dito’” [1].
Embora a interpretação de White não fosse incomum em sua época, ela não é apoiada pela maioria dos estudos bíblicos modernos [6]. Os estudiosos argumentam que a identificação de Maria Madalena com Maria de Betânia baseia-se em uma leitura superficial dos evangelhos e falha em levar em conta as distinções claras feitas pelos autores dos evangelhos entre essas duas mulheres [7].
Evidências contra a identificação de Maria Madalena com Maria de Betânia
Existem várias razões pelas quais os estudiosos bíblicos modernos rejeitam a identificação de Maria Madalena com Maria de Betânia:
- 1. Diferentes origens: Maria Madalena era de Magdala, enquanto Maria de Betânia vivia em Betânia [4].
- 2. Introduções separadas: Maria Madalena é introduzida em Lucas 8:2 sem qualquer conexão com Lázaro ou Betânia, enquanto Maria de Betânia é introduzida em Lucas 10:38-42 sem qualquer menção a Magdala ou possessão demoníaca [8].
- 3. Contextos distintos: Maria de Betânia é mencionada no contexto da ressurreição de Lázaro (João 11) e da unção dos pés de Jesus (João 12:1-8), mas esses eventos não são atribuídos a Maria Madalena [9].
- 4. Identificação consistente: Maria Madalena é consistentemente identificada como “Maria Madalena” ou “Maria, chamada Madalena”, enquanto Maria de Betânia é consistentemente referida como “Maria” ou “Maria, irmã de Marta” [10].
- 5. Nenhuma conexão direta: Nenhum dos evangelhos conecta diretamente Maria Madalena com Maria de Betânia ou sugere que elas sejam a mesma pessoa [5].
Além disso, a tradição cristã primitiva distingue Maria Madalena de Maria de Betânia como indivíduos separados [11]. Essa distinção foi mantida por muitos dos Pais da Igreja e estudiosos ao longo da história do cristianismo [12].
O possível envolvimento de Maria Madalena com Simão, o fariseu
O Dr. Rodrigo Silva e Ellen White, levantam uma especulação sobre a relação entre Maria Madalena e Simão, o fariseu, em cuja casa ocorreu a unção dos pés de Jesus. De acordo com a interpretação apresentada, o fato de Maria Madalena ter tido acesso à casa de Simão sem ser barrada ou censurada publicamente sugere que ela não era uma pecadora conhecida, como uma prostituta [21].
Além disso, o pensamento de Simão consigo mesmo, questionando se Jesus seria um profeta se soubesse que tipo de mulher estava tocando nele, indica que o pecado de Maria Madalena poderia ser de natureza sexual e, possivelmente, um caso escondido com o próprio Simão [22]. Essa interpretação baseia-se no raciocínio de que, se o pecado de Maria Madalena fosse amplamente conhecido, não haveria necessidade de Simão pensar consigo mesmo sobre a identidade dela, pois todos já saberiam [23].
Embora essa interpretação seja especulativa e não possa ser confirmada conclusivamente com base apenas nas evidências bíblicas, ela oferece uma perspectiva intrigante sobre a dinâmica entre Maria Madalena, Simão e Jesus. Se houvesse de fato um envolvimento entre Maria Madalena e Simão, isso poderia explicar a presença dela na casa dele e a reação de Simão ao vê-la ungir os pés de Jesus [24].
No entanto, é importante ressaltar que essa interpretação é baseada em especulação e não deve ser considerada como um fato estabelecido. A Bíblia não fornece detalhes explícitos sobre a natureza do pecado de Maria Madalena ou sobre qualquer envolvimento específico com Simão. Portanto, embora essa perspectiva possa adicionar uma camada adicional de complexidade à narrativa, ela deve ser tratada com cautela e não deve obscurecer a mensagem central de perdão, graça e transformação que Jesus oferece a todos, independentemente de seu passado [25].
Conclusão
Com base nas evidências bíblicas e históricas, a maioria dos estudiosos bíblicos modernos conclui que Maria Madalena e Maria de Betânia eram indivíduos distintos. Embora a interpretação de Ellen White, que as identificava como a mesma pessoa, fosse comum em sua época, ela não é apoiada por uma leitura cuidadosa dos evangelhos ou pela tradição cristã primitiva.
Compreender a distinção entre Maria Madalena e Maria de Betânia é importante para apreciar seus papéis únicos e contribuições para a vida e ministério de Jesus. Maria Madalena foi uma seguidora dedicada de Jesus, testemunha de sua crucificação, sepultamento e ressurreição, e a primeira pessoa a quem Jesus apareceu após sua ressurreição. Maria de Betânia, por outro lado, é lembrada por sua devoção a Jesus, exemplificada por sentar-se a seus pés para ouvir seus ensinamentos e ungir seus pés com perfume caro.
Ambas as mulheres desempenharam papéis significativos na história do cristianismo, mas é importante reconhecer suas identidades distintas e evitar a confusão e conflação que surgiram ao longo dos séculos. Ao fazer isso, podemos apreciar melhor suas contribuições individuais e o lugar único que ocupam na narrativa bíblica.
Referências
- [1] White, E. G. (1898). O Desejado de Todas as Nações. Pacific Press Publishing Association.
- [2] Beavis, M. A. (2012). Mary Magdalene: The First Woman Apostle. Bible Today, 50(3), 167-171.
- [3] Thompson, M. M. (1995). Mary of Magdala: Apostle to the Apostles. Bible Review, 11(2), 30-39.
- [4] Schaberg, J. (2002). The Resurrection of Mary Magdalene: Legends, Apocrypha, and the Christian Testament. Bloomsbury Publishing USA.
- [5] Burkett, D. (2002). The Son of Man Debate: A History and Evaluation. Cambridge University Press.
- [6] Ehrman, B. D. (2006). Peter, Paul, and Mary Magdalene: The Followers of Jesus in History and Legend. Oxford University Press.
- [7] Brock, A. G. (2003). Mary Magdalene, The First Apostle: The Struggle for Authority. Harvard Divinity School.
- [8] Hearon, H. E. (2017). The Mary Magdalene Tradition: Witness and Counter-Witness in Early Christian Communities. Liturgical Press.
- [9] Setzer, C. J. (1997). Excellent Women: Female Witness to the Resurrection. Journal of Biblical Literature, 116(2), 259-272.
- [10] Shoemaker, S. J. (1999). Rethinking the Gnostic Mary: Mary of Nazareth and Mary of Magdala in Early Christian Tradition. Journal of Early Christian Studies, 7(4), 555-595.
- [11] Maisch, I. (1998). Mary Magdalene: The Image of a Woman Through the Centuries. Liturgical Press.
- [12] Levine, A. J., & Robbins, M. M. (Eds.). (2006). A Feminist Companion to Mariology. Bloomsbury Publishing USA.
- [21] Bauckham, R. (2002). Gospel Women: Studies of the Named Women in the Gospels. Eerdmans Publishing Company.
- [22] Witherington, B. (1988). Women in the Ministry of Jesus: A Study of Jesus’ Attitudes to Women and Their Roles as Reflected in His Earthly Life. Cambridge University Press.
- [23] De Boer, E. A. (2004). Mary Magdalene: Beyond the Myth. Bloomsbury Publishing.
- [24] Beavis, M. A. (2012). Reconsidering Mary of Bethany. The Catholic Biblical Quarterly, 74(2), 281-297.
- [25] Thompson, M. M. (1995). Mary of Magdala: What the Da Vinci Code Misses. Christianity Today, 49(12), 48-49.