O Movimento Milerita e o Nascimento do Adventismo

Introdução

O movimento milerita, liderado por William Miller no século XIX, foi um dos mais significativos movimentos religiosos nos Estados Unidos. Seu impacto não apenas influenciou a religiosidade da época, mas também deu origem a diversas denominações que existem até hoje, incluindo a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Este artigo explora o desenvolvimento do milerismo, seu declínio após o “Grande Desapontamento” de 1844, e as consequências doutrinárias e sociais que se seguiram.

O Contexto Histórico e Religioso

William Miller viveu numa época conhecida como o “Second Great Awakening” (Segundo Grande Despertamento), um período de intenso fervor religioso nos Estados Unidos. A região de “Burned-over District” em Nova York era especialmente propícia para o surgimento de novos movimentos religiosos, muitos deles influenciados por crenças espiritualistas e ocultistas (CROSS, 1950).

Foi nesse contexto que Miller, um fazendeiro e estudioso da Bíblia, começou a pregar que a segunda vinda de Cristo ocorreria por volta de 1843-1844, baseado em sua interpretação das profecias do livro de Daniel. Sua mensagem atraiu milhares de seguidores, conhecidos como “mileritas” ou “adventistas” (KNIGHT, 1993).

Miller era um pregador carismático e convincente, mas sua metodologia de interpretação bíblica era falha. Ele se baseava numa abordagem literalista e num sistema de cálculos proféticos que não levava em conta o contexto histórico e o gênero literário dos textos bíblicos. Apesar disso, sua mensagem encontrou solo fértil num período marcado por ansiedades sociais e expectativas apocalípticas (NÚMEROS; BUTLER, 1993).

O movimento milerita cresceu rapidamente na década de 1840, contando com o apoio de pregadores como Joshua V. Himes e Josiah Litch. Jornais como o “Signs of the Times” e o “Midnight Cry” disseminavam as ideias mileritas, enquanto conferências e acampamentos reuniam multidões de crentes fervorosos. No entanto, à medida que a data prevista para o retorno de Cristo se aproximava, as tensões e expectativas aumentavam (KNIGHT, 2010).

O Grande Desapontamento e suas Consequências

Quando o dia 22 de outubro de 1844 passou sem que Cristo retornasse, os mileritas experimentaram uma profunda crise de fé conhecida como o “Grande Desapontamento”. Muitos abandonaram o movimento, enquanto outros tentavam encontrar explicações para o aparente fracasso da profecia (DICK, 1994).

Nesse contexto de confusão e desintegração do movimento, surgiram grupos com doutrinas divergentes e até mesmo heréticas. Os “Porta Fechada” acreditavam que a porta da salvação havia se fechado definitivamente em 22 de outubro e que não havia mais chance para arrependimento. Essa crença levou a uma atitude de exclusivismo e separatismo, com consequências nefastas para a unidade do movimento (ROWE, 2008).

Outro grupo problemático eram os “espiritualistas”, que mesclavam as crenças mileritas com práticas espiritualistas e ocultistas. Eles promoviam visões, transes e até mesmo imoralidade sexual em suas reuniões. Líderes como James White e Ellen G. Harmon (posteriormente White) se opuseram firmemente a esses grupos, reconhecendo neles uma influência satânica (KNIGHT, 1993).

A crise doutrinária e moral do milerismo atingiu um ponto crítico na Conferência de Albany, realizada em 1845. Nessa reunião, Miller e seus associados condenaram as doutrinas da “porta fechada” e do espiritualismo, reafirmando a crença na iminente segunda vinda de Cristo e na necessidade de um reavivamento espiritual genuíno. No entanto, os danos já estavam feitos, e o movimento continuou a se fragmentar (DICK, 1994).

O Legado do Milerismo

Apesar de seu declínio e divisões internas, o movimento milerita deixou um legado significativo no cenário religioso americano. Dele surgiram várias denominações que perpetuaram, de diferentes maneiras, a ênfase na segunda vinda de Cristo e na importância do estudo das profecias bíblicas (KNIGHT, 2010).

A Associação Evangélica Adventista e a Igreja Cristã do Advento foram duas dessas denominações. Elas mantiveram algumas das doutrinas básicas do milerismo, como a crença na mortalidade da alma e no sono inconsciente dos mortos, mas rejeitaram as especulações proféticas mais extremas e as tendências fanáticas (DICK, 1994).

No entanto, a denominação mais proeminente a emergir do milerismo foi a Igreja Adventista do Sétimo Dia, fundada por um pequeno grupo liderado por Ellen G. White e seu esposo James White. Esse grupo desenvolveu uma compreensão única da profecia de Daniel 8:14 e do ministério de Cristo no santuário celestial, que se tornou a base doutrinária da igreja (DOUGLASS, 1998).

Embora Ellen White tenha rejeitado as doutrinas da “porta fechada” e do espiritualismo, suas visões e escritos foram fundamentais para moldar a identidade e a missão da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Sob sua influência, a igreja desenvolveu uma ênfase na saúde, na educação e na pregação do evangelho em escala global (KNIGHT, 2010).

Apesar de suas raízes no milerismo, a Igreja Adventista do Sétimo Dia gradualmente se distanciou de muitas das crenças e práticas do movimento original. Ela rejeitou o fanatismo religioso e buscou fundamentar suas doutrinas numa sólida base bíblica, embora mantendo a expectativa da iminente volta de Cristo (SCHWARZ; GREENLEAF, 2000).

Conclusão

O movimento milerita foi um fenômeno complexo e multifacetado que deixou uma marca indelével na história religiosa americana. Seu estudo nos proporciona insights valiosos sobre os anseios espirituais, as crenças apocalípticas e as dinâmicas sociais que moldaram a religiosidade daquele período.

Ao mesmo tempo, a trajetória do milerismo serve como uma advertência sobre os riscos do fanatismo religioso desconectado de uma base bíblica sólida. As doutrinas da “porta fechada” e do espiritualismo, que emergiram após o Grande Desapontamento, ilustram os perigos de se afastar da Palavra de Deus e de se deixar levar por especulações e experiências subjetivas.

Nesse sentido, o legado mais duradouro do milerismo talvez seja a lição de que a fé cristã deve ser fundamentada num estudo diligente e responsável das Escrituras, evitando os extremos do fanatismo e da credulidade. Somente assim poderemos manter a esperança da segunda vinda de Cristo sem cair nos erros e excessos que marcaram o movimento milerita.

Recursos Adicionais:


  • CROSS, W. R. (1950). The Burned-Over District: The Social and Intellectual History of Enthusiastic Religion in Western New York, 1800–1850.
  • DICK, E. N. (1994). William Miller and the Advent Crisis, 1831-1844.
  • DOUGLASS, H. E. (1998). Messenger of the Lord: The Prophetic Ministry of Ellen G. White.
  • KNIGHT, G. R. (1993). Millennial Fever and the End of the World: A Study of Millerite Adventism.
  • KNIGHT, G. R. (2010). William Miller and the Rise of Adventism.
  • NUMBERS, R. L.; BUTLER, J. M. (eds.). (1993). The Disappointed: Millerism and Millenarianism in the Nineteenth Century.
  • ROWE, D. L. (2008). God’s Strange Work: William Miller and the End of the World.
  • SCHWARZ, R. W.; GREENLEAF, F. (2000). Light Bearers: A History of the Seventh-day Adventist Church.

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