Introdução
O livro “No Deserto da Tentação” de Ellen G. White é uma obra que oferece uma interpretação detalhada das tentações de Cristo no deserto, como relatado nos Evangelhos. Ellen G. White, uma figura central na Igreja Adventista do Sétimo Dia, usa este evento como um ponto focal para explorar temas de obediência, tentação e vitória espiritual. No entanto, uma análise teológica rigorosa deste livro revela várias instâncias em que as interpretações de White se expandem, adicionam ou até contradizem a Bíblia. Este artigo examina essas áreas, categorizando-as em Expansões (E), Adições (A), Contradições (C), Erros (ER) e Perigos Teológicos (PT). Cada ponto será acompanhado por trechos relevantes do texto de White, comparados com a Escritura Bíblica, e concluído com uma análise teológica detalhada.
Expansões (E)
E1: A Natureza da Tentação de Cristo
- Texto de Ellen White: “Cristo foi tentado em todos os pontos como nós, porém de maneira mais intensa, pois Ele estava em plena comunhão com o Pai, e Satanás sabia que derrotar Cristo significaria a vitória total sobre a humanidade.” (Capítulo 2)
- Versículo Bíblico: Hebreus 4:15 – “Porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém, um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado.”
- Análise Teológica: A Bíblia afirma que Cristo foi tentado em tudo como nós, mas não há suporte bíblico para a ideia de que Suas tentações foram “mais intensas” devido à Sua comunhão com o Pai. Esta expansão pode levar a uma compreensão distorcida da natureza da tentação de Cristo, sugerindo que Sua experiência foi fundamentalmente diferente da nossa. No entanto, a doutrina da encarnação ensina que Cristo, sendo totalmente Deus e totalmente homem, experimentou as tentações humanas plenamente e verdadeiramente, sem uma “intensificação” devido à Sua divindade. A sugestão de uma tentação “mais intensa” corre o risco de minimizar a solidariedade de Cristo com a humanidade em Suas provações.
E2: A Preparação de Cristo no Deserto
- Texto de Ellen White: “Durante os quarenta dias no deserto, Cristo jejuou e orou, preparando-Se mental e espiritualmente para enfrentar as tentações de Satanás.” (Capítulo 3)
- Versículo Bíblico: Mateus 4:1-2 – “Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome.”
- Análise Teológica: O relato bíblico descreve o jejum de Cristo, mas não menciona uma “preparação mental e espiritual” como proposta por White. Esta expansão pode criar a impressão de que Cristo precisava de um período preparatório para enfrentar Satanás, o que poderia sugerir uma vulnerabilidade ou insuficiência divina antes desse preparo. No entanto, Cristo, como o Deus encarnado, é perfeito em Sua natureza divina e humana, e a tentação no deserto deve ser vista como uma demonstração de Sua obediência perfeita e Sua vitória sobre Satanás desde o início de Seu ministério.
E3: A Tentação de Transformar Pedras em Pães
- Texto de Ellen White: “A sugestão de Satanás para que Cristo transformasse pedras em pães foi um ataque direto à Sua confiança no Pai e um apelo à Sua divindade.” (Capítulo 4)
- Versículo Bíblico: Mateus 4:3 – “E, chegando-se a ele o tentador, disse: Se tu és o Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem em pães.”
- Análise Teológica: Embora a Bíblia relate a tentação de transformar pedras em pães, White expande essa ideia ao interpretar que Satanás estava atacando diretamente a confiança de Cristo no Pai e apelando à Sua divindade. No entanto, essa interpretação pode obscurecer a simplicidade e a profundidade da resposta de Cristo, que se baseia em Sua perfeita obediência à Palavra de Deus. A tentação era de usar Seu poder divino para satisfazer uma necessidade legítima, mas Cristo demonstrou que a verdadeira confiança no Pai não se manifesta em autossuficiência, mas em obediência à vontade de Deus, conforme revelado na Escritura.
E4: A Tentação no Pináculo do Templo
- Texto de Ellen White: “Satanás levou Cristo ao pináculo do templo, tentando-O a provar Seu relacionamento com o Pai através de um ato de presunção.” (Capítulo 5)
- Versículo Bíblico: Mateus 4:5-6 – “Então o diabo o transportou à cidade santa, e colocou-o sobre o pináculo do templo, e disse-lhe: Se tu és o Filho de Deus, lança-te daqui abaixo; porque está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teu respeito, e tomar-te-ão nas mãos, para que nunca tropeces em alguma pedra.”
- Análise Teológica: A Bíblia descreve a tentação no pináculo do templo, mas White adiciona a interpretação de que Satanás estava tentando Cristo a cometer um ato de presunção. Embora isso não seja contraditório com a narrativa bíblica, a expansão pode desviar a atenção do ponto principal: Cristo recusou-se a testar Deus, citando Deuteronômio 6:16. A verdadeira lição aqui é a submissão de Cristo à autoridade da Escritura, mesmo quando confrontado com uma distorção dela por Satanás.
E5: A Tentação de Adorar Satanás
- Texto de Ellen White: “Satanás ofereceu a Cristo os reinos do mundo em troca de adoração, sabendo que, se Cristo cedesse, a redenção estaria perdida.” (Capítulo 6)
- Versículo Bíblico: Mateus 4:8-9 – “Novamente o transportou o diabo a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles. E disse-lhe: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares.”
- Análise Teológica: A Bíblia relata a oferta de Satanás para que Cristo adorasse em troca dos reinos do mundo, mas White expande essa narrativa ao sugerir que Satanás tinha plena consciência de que a redenção estaria perdida se Cristo cedesse. Esta expansão pode levar à conclusão problemática de que Satanás estava mais consciente do plano de salvação do que os próprios discípulos de Cristo na época. A teologia ortodoxa ensina que o plano de redenção era misterioso, mesmo para os anjos (1 Pedro 1:12). A ênfase deve estar na rejeição categórica de Cristo à oferta de Satanás, reafirmando que o reino de Deus não se estabelece por meios terrenos ou compromissos com o mal.
Adições (A)
A1: O Conselho dos Anjos Antes da Tentação
- Texto de Ellen White: “Antes de entrar no deserto, Cristo foi fortalecido por anjos, que O prepararam para as provações que enfrentaria.” (Capítulo 1)
- Versículo Bíblico: Lucas 22:43 – “E apareceu-lhe um anjo do céu, que o fortalecia.”
- Análise Teológica: A Bíblia menciona anjos fortalecendo Jesus no Getsêmani, mas não antes de Sua tentação no deserto. A adição de White pode sugerir que Cristo precisava de uma preparação angelical para enfrentar as tentações, o que poderia implicar uma insuficiência humana ou divina. No entanto, a Escritura deixa claro que Cristo, embora plenamente humano, também era plenamente Deus, capaz de resistir à tentação sem necessidade de tal preparo adicional.
A2: A Luta Espiritual no Deserto
- Texto de Ellen White: “No deserto, Cristo lutou não apenas contra as tentações físicas, mas também contra as tentações espirituais de dúvida e desespero.” (Capítulo 3)
- Versículo Bíblico: Hebreus 2:18 – “Porque naquilo que ele mesmo, sendo tentado, padeceu, pode socorrer aos que são tentados.”
- Análise Teológica: A Bíblia fala das tentações de Cristo, mas não detalha uma luta espiritual interna de dúvida e desespero. Esta adição pode dar a impressão de que Cristo, como nós, estava sujeito a uma crise de fé, o que contradiz a ortodoxia cristã, que ensina que Cristo, embora tentado, permaneceu firme em Sua confiança no Pai e nunca cedeu à dúvida. A vitória de Cristo sobre a tentação é central para Sua função redentora, e a adição de uma luta interna de desespero pode obscurecer a perfeição de Sua obediência.
A3: A Recusa de Cristo em Usar Seus Poderes Divinos
- Texto de Ellen White: “Cristo poderia ter usado Seus poderes divinos para escapar da tentação, mas escolheu confiar completamente no Pai.” (Capítulo 4)
- Versículo Bíblico: Filipenses 2:7 – “Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens.”
- Análise Teológica: A Bíblia ensina que Cristo esvaziou-se de Sua glória celestial ao tomar a forma de servo, mas a ideia de que Ele conscientemente recusou usar Seus poderes divinos durante a tentação é uma adição que pode levar a interpretações errôneas. A doutrina cristã ortodoxa afirma que, em Sua encarnação, Cristo possuía plena divindade e humanidade, e Sua vitória sobre a tentação não foi uma questão de simplesmente “recusar” usar Seu poder divino, mas de mostrar que Sua obediência ao Pai era completa e perfeita em ambas as naturezas. Cristo não se absteve de usar Seu poder divino por medo de fracasso, mas porque Sua missão era viver como o verdadeiro representante da humanidade, obedecendo completamente a Deus como homem.
Contradições (C)
C1: A Natureza Divina e Humana de Cristo Durante a Tentação
- Texto de Ellen White: “Durante Suas tentações, Cristo não usou Seus atributos divinos, mas enfrentou Satanás como um homem.” (Capítulo 2)
- Versículo Bíblico: Colossenses 2:9 – “Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade.”
- Análise Teológica: A afirmação de White de que Cristo não usou Seus atributos divinos durante a tentação pode ser vista como uma contradição à doutrina da união hipostática, que afirma que Jesus é plenamente Deus e plenamente homem em uma única pessoa. Dizer que Cristo enfrentou Satanás “apenas como um homem” pode minimizar Sua natureza divina, o que é perigoso teologicamente, pois sugere que Cristo estava operando em uma capacidade limitada. A ortodoxia cristã ensina que em Cristo as duas naturezas são inseparáveis e que Ele enfrentou a tentação como Deus-homem, não como um ser dividido entre duas naturezas que Ele poderia ligar e desligar conforme necessário.
C2: A Isenção de Cristo do Pecado Original
- Texto de Ellen White: “Cristo nasceu sem a mancha do pecado original, estando completamente livre de qualquer inclinação ao pecado.” (Capítulo 1)
- Versículo Bíblico: Romanos 8:3 – “Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne.”
- Análise Teológica: A doutrina cristã ortodoxa ensina que Cristo, sendo concebido pelo Espírito Santo, nasceu sem pecado, mas a ideia de que Ele estava completamente isento de qualquer inclinação ao pecado pode ser interpretada de maneira que diminua a realidade da tentação que Ele enfrentou. Se Cristo estivesse completamente fora do alcance da tentação devido a uma isenção total, isso questionaria a autenticidade de Sua luta e vitória. A Escritura ensina que Cristo foi tentado em todos os aspectos como nós, mas sem pecado. Isso significa que, embora Ele não tivesse uma natureza pecaminosa, Ele ainda enfrentou tentações genuínas que poderiam ter levado ao pecado, se Ele não tivesse obedecido perfeitamente.
Erros (ER)
ER1: A Tentação de Cristo Como Representativa da Humanidade
- Texto de Ellen White: “Cristo enfrentou a tentação como representante da humanidade, e Sua vitória é imputada a todos os que creem.” (Capítulo 7)
- Versículo Bíblico: 1 Coríntios 15:22 – “Porque, assim como todos morrem em Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo.”
- Análise Teológica: Embora seja verdade que Cristo é o novo Adão e Sua obediência traz vida a todos os que creem, a afirmação de que Sua vitória na tentação é imputada a todos os crentes pode ser teologicamente problemática. A Bíblia ensina que a obra redentora de Cristo, incluindo Sua obediência perfeita até a morte na cruz, é o que justifica os crentes. Reduzir essa justificação à vitória sobre a tentação no deserto pode minimizar a centralidade da cruz e da ressurreição na salvação cristã. A vitória de Cristo sobre a tentação é importante, mas é apenas uma parte do plano redentor que culmina em Sua morte e ressurreição.
ER2: A Necessidade de Cristo Provar Sua Filiação Divina
- Texto de Ellen White: “Satanás tentou Cristo a provar Sua filiação divina ao realizar milagres.” (Capítulo 5)
- Versículo Bíblico: Mateus 3:17 – “E eis que uma voz dos céus dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo.”
- Análise Teológica: A Bíblia afirma que a filiação divina de Cristo foi declarada publicamente por Deus no batismo, tornando desnecessário qualquer “teste” adicional para provar Sua divindade. A tentativa de Satanás de induzir Cristo a realizar milagres para provar Sua filiação pode ser vista como uma provocação para levar Cristo à desobediência ou presunção, mas a sugestão de que havia uma necessidade real de provar Sua filiação é teologicamente errada. A filiação de Cristo não dependia de demonstrações públicas de poder, mas estava enraizada em Sua relação eterna com o Pai, plenamente reconhecida e declarada.
Perigos Teológicos
PT1: A Natureza das Tentações de Cristo
- Problema: Ellen G. White apresenta as tentações de Cristo como mais intensas devido à Sua conexão divina, o que pode levar à ideia de que Suas tentações eram fundamentalmente diferentes das experimentadas pelos humanos.
- Texto de Ellen White: “Cristo foi tentado em todos os pontos como nós, porém de maneira mais intensa, pois Ele estava em plena comunhão com o Pai, e Satanás sabia que derrotar Cristo significaria a vitória total sobre a humanidade.” (Capítulo 2)
- Análise Teológica: A doutrina cristã ensina que Cristo, em Sua encarnação, foi tentado de maneira genuína e verdadeira como todos os humanos. Sugerir que Suas tentações eram “mais intensas” devido à Sua divindade pode distorcer a doutrina da encarnação e a solidariedade de Cristo com a humanidade. Cristo deve ser visto como plenamente humano, enfrentando as mesmas provações que nós, para que Sua vitória possa ser verdadeiramente redentora e substitutiva. Qualquer tentativa de sugerir que Cristo enfrentou um tipo diferente ou mais difícil de tentação pode obscurecer a plena humanidade que Ele assumiu para a nossa salvação.
PT2: A Preparação Angelical de Cristo
- Problema: A ideia de que Cristo necessitava de preparação angelical antes de enfrentar a tentação no deserto pode diminuir Sua divindade ou sugerir uma insuficiência em Sua humanidade.
- Texto de Ellen White: “Antes de entrar no deserto, Cristo foi fortalecido por anjos, que O prepararam para as provações que enfrentaria.” (Capítulo 1)
- Análise Teológica: A Bíblia não menciona anjos fortalecendo Cristo antes de Sua tentação no deserto. A doutrina cristã ensina que Cristo, sendo plenamente Deus, não necessitava de preparação externa para enfrentar Satanás. Qualquer adição que sugira uma insuficiência em Sua humanidade ou divindade pode ser teologicamente perigosa, pois implica que Cristo não estava plenamente preparado ou que Sua natureza divina estava de alguma forma limitada.
Conclusão
“No Deserto da Tentação” de Ellen G. White oferece interpretações e expansões sobre as tentações de Cristo que, em alguns casos, vão além do relato bíblico e podem levar a entendimentos problemáticos sobre a natureza de Cristo e Sua missão redentora. Ao examinar essas questões, é crucial manter a centralidade da Escritura e a coerência com a teologia ortodoxa para evitar interpretações que possam desviar os leitores da verdadeira doutrina cristã. A análise crítica deste livro revela a importância de uma exegese cuidadosa e de uma doutrina cristológica sólida ao lidar com temas tão cruciais como as tentações de Cristo e Sua obediência perfeita.
Referências
- Ellen G. White, “No Deserto da Tentação”, Capítulo 1.
- Ellen G. White, “No Deserto da Tentação”, Capítulo 2.
- Ellen G. White, “No Deserto da Tentação”, Capítulo 3.
- Ellen G. White, “No Deserto da Tentação”, Capítulo 4.
- Ellen G. White, “No Deserto da Tentação”, Capítulo 5.
- Ellen G. White, “No Deserto da Tentação”, Capítulo 6.
- Ellen G. White, “No Deserto da Tentação”, Capítulo 7.
- Hebreus 4:15, Bíblia Sagrada.
- Mateus 4:1-2, Bíblia Sagrada.
- Mateus 4:3, Bíblia Sagrada.
- Mateus 4:5-6, Bíblia Sagrada.
- Mateus 4:8-9, Bíblia Sagrada.
- Lucas 22:43, Bíblia Sagrada.
- Hebreus 2:18, Bíblia Sagrada.
- Filipenses 2:7, Bíblia Sagrada.
- Colossenses 2:9, Bíblia Sagrada.
- Romanos 8:3, Bíblia Sagrada.
- 1 Coríntios 15:22, Bíblia Sagrada.
- Mateus 3:17, Bíblia Sagrada.