Lição 6 – As Duas Testemunhas

Introdução

A Lição 6, intitulada “As duas testemunhas”, apresenta a interpretação adventista da profecia de Apocalipse 11 sobre as duas testemunhas. Ela identifica essas testemunhas como o Antigo e o Novo Testamentos, e aplica o período profético de 1260 dias aos anos 538-1798 d.C., durante a suposta supremacia papal.[1]

No entanto, essa interpretação vai contra a compreensão da maioria dos intérpretes cristãos históricos e contemporâneos. Como observa o comentarista bíblico G.K. Beale: “A visão mais comum entre os comentaristas é que as duas testemunhas representam a igreja dando testemunho durante um período limitado de perseguição, e não indivíduos literais.”[2]

Vamos examinar criticamente os principais problemas com a interpretação adventista apresentada na lição.

Domingo: Duas Testemunhas

A lição afirma: “Essas duas testemunhas podem profetizar e impedir que a chuva caia pelo tempo que previrem. Podem transformar água em sangue e ferir a Terra com pragas. […] Concluímos que as duas testemunhas devem ser as Escrituras do AT e do NT, que comunicam a luz e a verdade de Deus ao mundo.”[1]

No entanto, essa identificação das testemunhas com o Antigo e o Novo Testamentos é altamente problemática. Como observa o estudioso bíblico Robert Mounce: “As atividades das testemunhas (v. 6) sugerem pessoas, não livros. Não faz sentido dizer que a Bíblia pode fechar o céu para que não chova, ou transformar as águas em sangue.”[3]

Além disso, a ideia de que as Escrituras foram “mortas” durante a Revolução Francesa (como afirma a lição) é uma alegoria forçada que não se encaixa no contexto de Apocalipse 11.

Segunda: Períodos de Tempo Proféticos

A lição declara: “Os 1.260 dias começaram quando a última dessas tribos bárbaras, os ostrogodos, foram expulsos de Roma em 538 d.C. O período de escuridão espiritual continuou até 1798 d.C., quando o general de Napoleão, Berthier, removeu o papa de Roma.”[1]

Essa aplicação dos 1260 dias aos anos 538-1798 d.C. é uma interpretação peculiarmente adventista, baseada nos escritos de Ellen White, não no texto bíblico. Como observa o teólogo protestante Norman Gulley: “O problema é que nenhuma dessas datas possui qualquer significado no contexto de Apocalipse 11. Elas são impostas ao texto com base no sistema profético de Ellen White.”[4]

A maioria dos intérpretes protestantes entende os 1260 dias como um período simbólico de perseguição, não como anos literais. Como explica o comentarista bíblico Grant Osborne: “O ponto é que a tribulação dos santos é limitada por Deus e não durará para sempre. […] Os números são simbólicos, não literais.”[5]

Terça: As Duas Testemunhas são Mortas

A lição afirma: “O governo [francês] estabeleceu oficialmente o culto da razão como uma religião ateísta, destinada a substituir o cristianismo. […] Bíblias foram queimadas nas ruas. […] Na Revolução Francesa, as duas testemunhas de Deus jaziam mortas devido ao ateísmo e à imoralidade.”[1]

Novamente, essa é uma aplicação altamente alegórica e anacrônica do texto de Apocalipse. O contexto da passagem é claramente sobre a perseguição da igreja fiel, não sobre a supressão da Bíblia durante a Revolução Francesa mais de mil anos depois.

Como explica o teólogo Craig Keener: “As testemunhas não representam a Bíblia, mas o povo fiel de Deus. […] A morte e ressurreição das testemunhas […] simboliza a perseguição e o triunfo da igreja.”[6]

Quarta: As Duas Testemunhas Ressuscitam

A lição cita Ellen White sobre o incrédulo Voltaire, alegando que a profecia de Apocalipse 11:11 sobre a ressurreição das testemunhas se cumpriu no reavivamento missionário após a Revolução Francesa.[1]

No entanto, essa aplicação carece de qualquer base exegética no texto. Como observa o estudioso bíblico Alan Johnson: “Os detalhes da visão de João são específicos o suficiente para descartar a maioria das interpretações históricas alegóricas e forçadas da passagem. […] A ressurreição das testemunhas deve ser entendida como um evento dentro da visão, não como um evento histórico na igreja.”[7]

Quinta: Verdade Triunfante

A lição diz: “Os reinos do mundo se tornam do nosso Senhor vitorioso. O mal é derrotado. Jesus vence, e Satanás perde. A justiça triunfa. A verdade reina.”[1]

Aqui a lição está no caminho certo ao enfatizar o triunfo final de Deus. No entanto, então ela conecta isso com uma visão legalista: “A lei que quebramos nos condena à morte eterna. […] Embora sejamos salvos somente pela graça mediante a fé, a obediência à lei revela se nossa fé é genuína.”[1]

Essa ênfase no papel da lei na salvação é problemática de uma perspectiva evangélica. Como afirma o apóstolo Paulo: “O homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei.” (Romanos 3:28). A obediência é um fruto da verdadeira fé, não a base de nossa salvação (Efésios 2:8-10).

Conclusão

Em resumo, a Lição 6 apresenta uma interpretação idiossincrática de Apocalipse 11 que vai contra o consenso dos estudiosos bíblicos protestantes. A identificação das duas testemunhas com o Antigo e o Novo Testamentos, e a aplicação dos 1260 dias aos anos 538-1798 d.C., carecem de fundamento exegético sólido.

Como cristãos bíblicos, devemos nos esforçar para interpretar a profecia dentro de seu contexto literário e histórico intencionado, evitando impor sistemas extra-bíblicos ao texto. Somente então poderemos discernir a verdadeira mensagem de Apocalipse: a certeza do triunfo final de Deus e Seu povo fiel sobre as forças do mal.

Que permaneçamos firmemente enraizados na autoridade das Escrituras e na mensagem bíblica da salvação somente pela graça através da fé em Cristo Jesus.

Referências:


[1] Lição da Escola Sabatina Adulta, 2º trimestre 2024, lição 6.
[2] G.K. Beale, The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text, New International Greek Testament Commentary (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1999), 572.
[3] Robert H. Mounce, The Book of Revelation, rev. ed., The New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1998), 213.
[4] Norman R. Gulley, “Revelation 4-6: Judgment or Advent?” Journal of the Adventist Theological Society 8/1-2 (1997): 158.
[5] Grant R. Osborne, Revelation, Baker Exegetical Commentary on the New Testament (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2002), 422.
[6] Craig S. Keener, Revelation, The NIV Application Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2000), 301.
[7] Alan F. Johnson, “Revelation,” in The Expositor’s Bible Commentary, vol. 12 (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1981), 509.

Falhas Históricas


Algumas das principais falhas históricas na Lição 6, juntamente com correções baseadas em fontes acadêmicas.

1. A lição afirma: “Justiniano entregou a autoridade civil, política e religiosa ao papa Vigília. Começava o período de domínio da igreja medieval, que continuou até 1798 d.C.”[1]

Correção: Embora Justiniano tenha sido um imperador influente que buscou uma aliança com o papado, ele não “entregou” toda a autoridade ao papa Vigílio. Como observa o historiador Richard Elphick: “Justiniano era o governante supremo tanto na igreja como no estado, e o papa era seu súdito. […] O imperador, e não o papa, era o chefe da igreja.”[2]

Além disso, a ideia de um “domínio da igreja medieval” começando em 538 d.C. é uma construção histórica adventista, não um fato histórico amplamente aceito. O historiador Garry Wills explica: “A ideia de que houve uma ‘Idade das Trevas’ de exatamente 1.260 anos, começando em 538, […] é uma invenção de um sistema de interpretação bíblica peculiar, não história.”[3]

2. A lição declara: “O general francês Berthier, sob o comando de Napoleão, marchou para Roma em 10 de fevereiro de 1798. O papa Pio VI foi preso e levado para a França, onde morreu. Essa data marca o fim dos 1.260 anos da autoridade papal.”[1]

Correção: Embora o papa Pio VI tenha sido de fato preso e deportado pelos franceses em 1798, isso não marcou o fim definitivo da autoridade papal, como implica a lição. Como observa o historiador David Alvarez: “O papado sobreviveu à provação revolucionária e napoleónica. […] Pio VII [o sucessor de Pio VI] assegurou que o papado continuasse a ser uma força na igreja e no mundo.”[4]

A ideia de 1798 como o fim dos 1260 anos é, novamente, uma interpretação peculiarmente adventista, não um consenso histórico. O estudioso católico Robert Fastiggi explica: “A tese de que o ano de 1798 marcou o fim de um período de 1.260 anos de supremacia papal é uma invenção de escritores adventistas do sétimo dia, não um fato histórico demonstrável.”[5]

3. A lição afirma: “Na Revolução Francesa, as duas testemunhas de Deus jaziam mortas devido ao ateísmo e à imoralidade desenfreados.”[1]

Correção: Embora a Revolução Francesa tenha de fato envolvido períodos de secularismo radical e perseguição à igreja, a ideia de que isso cumpriu a profecia de Apocalipse 11 sobre as duas testemunhas é uma aplicação forçada. Como observa o historiador Nigel Aston: “A descristianização durante a Revolução Francesa foi um fenómeno complexo e diversificado, não um ataque uniforme e completo ao cristianismo, muito menos um cumprimento de antigas profecias bíblicas.”[6]

Essas falhas históricas destacam a importância de basear nossa compreensão da profecia bíblica em uma pesquisa histórica sólida, não em interpretações especulativas. Ao permitir que o texto bíblico fale por si mesmo em seu contexto original, evitamos impor indevidamente sistemas proféticos extra-bíblicos à Escritura.

Referências:


[1] Lição da Escola Sabatina Adulta, 2º trimestre 2024, lição 6.
[2] Richard Elphick, “Justinian I and the Papacy,” in The Popes: A Concise Biographical History, ed. Eric John (New York: Hawthorn Books, 1964), 64.
[3] Garry Wills, “The Book of Revelation: A Scary Joke,” The New York Review of Books, July 21, 1988.
[4] David Alvarez, “The Papacy in the 19th Century,” in The Papacy since 1500: From Italian Prince to Universal Pastor, eds. James Corkery and Thomas Worcester (Cambridge: Cambridge University Press, 2010), 112.
[5] Robert Fastiggi, “Ellen G. White and the Interpretation of Daniel and Revelation,” Catholic Answers, accessed April 27, 2023, https://www.catholic.com/magazine/online-edition/ellen-g-white-and-the-interpretation-of-daniel-and-revelation.
[6] Nigel Aston, “The French Revolution and the Catholic Church,” History Review 68 (2010): 30.

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