Introdução
A história de William Miller e do movimento milerita é um dos episódios mais fascinantes e ao mesmo tempo trágicos da história religiosa americana do século XIX. Miller, um fazendeiro autodidata de Nova York, dedicou-se intensamente ao estudo das profecias bíblicas e chegou à conclusão de que Jesus Cristo retornaria à Terra entre 1843 e 1844. Sua mensagem atraiu milhares de seguidores fervorosos, conhecidos como “mileritas”, que venderam suas propriedades e se prepararam para o fim do mundo. Quando a data fatídica chegou e passou sem que nada acontecesse, o movimento entrou em crise e se fragmentou, dando origem a diversos grupos religiosos, entre eles a Igreja Adventista do Sétimo Dia.
A trajetória de William Miller e seu impacto na religiosidade americana levantam questões importantes sobre o papel da interpretação bíblica, do fanatismo religioso e das expectativas apocalípticas na psicologia individual e coletiva. Neste artigo, vamos analisar mais a fundo a história desse movimento, seus erros e acertos, e as lições que podemos extrair dele para nossa vida espiritual e nossa postura diante de alegações proféticas.
De Fazendeiro a Profeta: A Vida e a Mensagem de William Miller
William Miller nasceu em 1782 em Pittsfield, Massachusetts, numa família batista. Apesar de sua educação limitada, ele era um leitor voraz e desde cedo demonstrou grande interesse por temas religiosos e proféticos. Após lutar na Guerra de 1812 e se estabelecer como fazendeiro em Low Hampton, Nova York, ele iniciou um intenso período de estudos bíblicos, especialmente dos livros de Daniel e Apocalipse.
Usando um método de interpretação literal e matemático das profecias, Miller chegou à conclusão de que os 2300 dias mencionados em Daniel 8:14 na verdade representavam 2300 anos, e que esse período terminaria em 1843 ou 1844, quando Cristo voltaria, o santuário celestial seria purificado e o mundo chegaria ao fim. Convencido da importância dessa descoberta, ele relutou inicialmente em divulgá-la, mas a partir de 1831 começou a pregar sua mensagem em igrejas e acampamentos.
A eloqüência de Miller, aliada ao clima de efervescência religiosa da época (o chamado “Segundo Grande Despertamento”), atraiu multidões cada vez maiores. Seus seguidores, apelidados de “mileritas”, vinham de diversas denominações protestantes e chegaram a somar entre 50 e 100 mil pessoas. Muitos venderam suas propriedades, abandonaram seus empregos e se dedicaram integralmente à pregação da volta iminente de Cristo.
O fervor apocalíptico atingiu seu ápice em 1844, após uma revisão dos cálculos de Miller por Samuel Snow estabelecer a data de 22 de outubro como o dia exato da volta de Jesus. Milhares de mileritas se reuniram em vigílias e acampamentos para esperar o grande evento. Alguns inclusive confeccionaram “roupões da ascensão” para subir aos céus. Mas o dia 22 de outubro amanheceu e terminou sem qualquer sinal do fim. A decepção e a zombaria tomaram conta dos mileritas. Era o “Grande Desapontamento”.
Após o choque inicial, o movimento milerita se fragmentou. Alguns abandonaram totalmente a fé, outros tentaram remarcar novas datas para a volta de Cristo. Um grupo liderado por Hiram Edson e os esposos White reinterpretou a profecia, afirmando que Cristo havia iniciado um julgamento investigativo no santuário celestial em 22/10/1844, e que em breve ele voltaria de fato. Essa visão deu origem à Igreja Adventista do Sétimo Dia, que até hoje aguarda a Segunda Vinda, mas sem marcar datas.
William Miller faleceu em 1849, decepcionado e desiludido, mas ainda firme em sua fé na doutrina do advento. Apesar de sinceramente convicto de sua mensagem, ele reconheceu que errou ao fixar datas específicas, e incentivou seus seguidores a continuarem fiéis à Bíblia.
Reflexões e Lições do Movimento Milerita
A história de William Miller e dos mileritas nos traz lições importantes sobre os perigos do fanatismo religioso e da interpretação especulativa das profecias bíblicas. Por mais bem intencionado que fosse, Miller cometeu o erro de se apegar a uma leitura excessivamente literal e matemática da Bíblia, ignorando o caráter simbólico e condicional de muitas profecias. Seu cálculo das 70 semanas de Daniel era engenhoso, porém muito questionável do ponto de vista exegético e hermenêutico.
Além disso, ele e seus seguidores caíram na tentação de “forçar a mão de Deus”, determinando datas para um evento que o próprio Jesus disse que ninguém sabe, exceto o Pai (Mt 24:36). Essa atitude, comum entre muitos grupos apocalípticos ao longo da história, denota uma ansiedade excessiva pelo fim e um descaso pelos propósitos de Deus no tempo presente. A Parábola das Dez Virgens (Mt 25:1-13) nos ensina que devemos estar sempre vigilantes e prontos para a volta de Cristo, mas sem especulações vãs.
O caso dos mileritas também evidencia os riscos psicológicos e sociais de movimentos fortemente centrados em expectativas apocalípticas. Muitos dos seguidores de Miller sacrificaram bens, relacionamentos e a própria sanidade mental devido à certeza absoluta na data fatídica. O “Grande Desapontamento” gerou traumas, apostasias e cismas difíceis de cicatrizar. A fé cristã não deve ser baseada em datas, cálculos ou sinais sensacionais, mas na confiança serena nas promessas de Deus e no testemunho equilibrado das Escrituras.
Por outro lado, não podemos simplesmente descartar Miller e os mileritas como fanáticos ou charlatões. Sua ênfase na iminência da volta de Cristo e na necessidade de um reavivamento espiritual trouxe à tona temas bíblicos importantes que estavam esquecidos por muitas igrejas da época. Sua paixão pelo estudo das profecias, ainda que equivocada, demonstrava um amor sincero pela Palavra de Deus. E o movimento adventista que surgiu de suas ideias, apesar de controverso em alguns pontos doutrinários, tem desempenhado um papel significativo na história do cristianismo, especialmente em suas ênfases na guarda do sábado, na pregação profética e na mensagem de saúde.
Conclusão
Em suma, a trajetória de William Miller e do movimento milerita é um caso complexo e instigante na história do cristianismo. Ela nos alerta para os perigos do fanatismo apocalíptico e da interpretação especulativa da Bíblia, mas também nos desafia a levar a sério as profecias bíblicas e a viver na expectativa do retorno glorioso de nosso Senhor Jesus Cristo. Que possamos, como cristãos, encontrar o equilíbrio entre a vigilância e a serenidade, entre o fervor e a sensatez, sempre firmes na fé e esperança que temos em Cristo, o Alpha e o Ômega, o Princípio e o Fim. Maranata! Ora vem, Senhor Jesus!
Sugestões de Leitura
- Biografia de William Miller e análise de seus escritos e interpretações proféticas:
“William Miller and the Advent Crisis, 1831-1844” de Everett N. Dick (1994) - O contexto histórico-religioso do Segundo Grande Despertamento nos EUA:
“The Second Great Awakening and the Transcendentalists” de Barry Hankins (2004) - Estudos teológicos sobre interpretação profética, escatologia e apocalipsismo:
“The Apocalyptic Imagination: An Introduction to Jewish Apocalyptic Literature” de John J. Collins (2016) - A febre do Milerismo
Millennial Fever and the End of the World: A Study of Millerite Adventism Paperback – January 1, 1993 - Análises sociológicas e psicológicas de movimentos milenaristas/messiânicos:
“The Pursuit of the Millennium: Revolutionary Millenarians and Mystical Anarchists of the Middle Ages” de Norman Cohn (1970) - Comentários e hermenêuticas dos livros de Daniel e Apocalipse:
“Daniel: A Commentary on the Book of Daniel” de John J. Collins (1993) - Comparação com outros movimentos apocalípticos na história do cristianismo:
“Revelation: A Commentary” de Robert H. Mounce (1997) - “Apocalyptic Movements in Contemporary Politics: Christian and Jewish Zionism” editado por Carlo Aldrovandi e Gorazd Andrejč (2021)