Política, religião e liberdade religiosa nos EUA
A nomeação de Ben Carson – neurocirurgião renomado, adventista do sétimo dia e ex-secretário de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos EUA – como vice-presidente de uma nova Comissão Presidencial sobre Liberdade Religiosa criada pelo ex-presidente Donald Trump desperta debates intensos. Anunciada durante o Dia Nacional de Oração, essa comissão foi estabelecida por ordem executiva de Trump e é liderada pelo vice-governador do Texas, Dan Patrick, tendo Carson como vice-chair (vice-presidente). A proposta da comissão é “defender a liberdade religiosa” e produzir um relatório abrangente sobre os fundamentos desse princípio nos Estados Unidos, bem como as ameaças atuais a ele. Composta por líderes religiosos e aliados políticos próximos de Trump – incluindo figuras de peso da direita cristã, como o pastor Franklin Graham, a televangelista Paula White, além de líderes católicos como o cardeal Timothy Dolan e o bispo Robert Barron e até um rabino, Meir Soloveichik – a comissão reflete a estreita relação entre política e religião na América contemporânea.
Sob a bandeira da “liberdade religiosa”, a comissão pretende focar em pautas caras ao eleitorado conservador cristão: direitos parentais na educação, proteções de consciência, defesa de locais de culto, liberdade de expressão religiosa, escolha escolar (school choice) e “autonomia institucional” para organizações de fé. Todas essas são questões que emergiram nos últimos anos como parte de uma reação política ao secularismo e às mudanças sociais, como os direitos LGBT e o pluralismo religioso nas escolas. Trump e muitos conservadores alegam que a fé (especialmente a fé cristã tradicional) está sob ataque nos EUA – ele mesmo afirmou que, sob a administração Biden, houve um “padrão atroz de mirar em cristãos pacíficos, enquanto se ignoravam ofensas anti-cristãs violentas”. Assim, paradoxalmente, justificam iniciativas governamentais em nome da liberdade religiosa que, na prática, servem para promover a influência da religião (majoritariamente cristã) na esfera pública e política.
Historicamente, os EUA se orgulham de uma separação entre Igreja e Estado consagrada na Primeira Emenda da Constituição. Entretanto, o significado de “liberdade religiosa” tornou-se altamente politizado. Para grupos conservadores evangélicos, significa garantir que práticas e expressões religiosas tradicionais não sejam suprimidas pelo Estado – por exemplo, permitir orações e símbolos religiosos em espaços públicos ou assegurar a isenção de instituições religiosas em cumprir certas leis que contrariem suas crenças. Esses grupos frequentemente falam em uma “guerra contra a fé” no país. Durante a campanha presidencial, candidatos republicanos enfatizavam que a eleição seria sobre liberdade religiosa; Ben Carson também fez desse tema um pilar de sua pré-candidatura, alinhando-se ao discurso de que há um “ataque” aos cristãos nos EUA. Na visão deles, medidas como a proibição de oração patrocinada em escolas públicas ou a obrigatoriedade de fornecer serviços a casamentos homoafetivos feririam a liberdade de religião dos cristãos americanos.
Por outro lado, defensores da separação igreja-Estado alertam que a retórica conservadora confunde liberdade de religião com privilégios religiosos. A crítica comum é que não existe uma guerra contra o exercício legítimo dos direitos de se expressar religiosamente – o problema está em quando se exige que o governo apoie ou imponha ideias religiosas particulares. Em outras palavras, todos concordam que ninguém deve ser impedido de praticar sua fé; a controvérsia está em até que ponto o Estado deve acomodar ou até promover práticas religiosas específicas. Grupos laicos argumentam que muitas iniciativas ditas de “liberdade religiosa” defendidas pela direita cristã buscam na verdade impor valores religiosos maioritários na esfera pública, em detrimento da neutralidade do Estado. Banning prayer (proibir oração obrigatória) em escolas públicas, por exemplo, não impede ninguém de orar individualmente – apenas evita que o Estado endosse oficialmente uma religião.
Um adventista na pauta da direita cristã
A participação de Ben Carson nessa iniciativa chama atenção não apenas por seu currículo impressionante, mas principalmente por sua identidade religiosa. Carson e sua esposa são membros ativos da Igreja Adventista do Sétimo Dia, uma denominação protestante conhecida por enfatizar a observância do sábado como dia sagrado e por sua tradição de apoiar fortemente a separação entre Igreja e Estado. Durante sua carreira política, Carson sempre se apresentou como um cristão devoto e muitas de suas posições agradaram os conservadores religiosos. No entanto, sua presença ao lado de figuras emblemáticas da direita cristã norte-americana – um ecossistema dominado por evangélicos de linha dura e católicos tradicionalistas – é vista por alguns como surpreendente, dado que os adventistas historicamente mantêm certa distância de alianças político-religiosas tão explícitas.
Vale lembrar que a própria Igreja Adventista, como instituição, adota postura de neutralidade política. Quando Carson despontou na política durante as eleições, a Igreja Adventista do Sétimo Dia divulgou comunicados reforçando que não apoia nem se opõe a candidatos específicos, e reiterou seu compromisso de longa data com o princípio da separação entre Igreja e Estado. Em uma declaração oficial, os adventistas são aconselhados a não usar sua influência com líderes políticos e civis para avançar sua fé ou inibir a fé de outros, e a não usar púlpitos ou publicações da Igreja para promover agendas partidárias. Esse ethos reflete a preocupação adventista de que, ao misturar religião e política, corre-se o risco de comprometer a missão espiritual e, pior, de ferir a liberdade religiosa de terceiros. Carson, porém, como cidadão, optou por se engajar politicamente, e o fez abraçando causas e retórica muito próximas às da chamada direita cristã americana.
Essa escolha de Carson gerou incômodo em alguns círculos adventistas. Enquanto muitos fiéis se orgulham de suas conquistas profissionais e veem com bons olhos sua defesa aberta de princípios morais, outros apontam incoerências com valores adventistas tradicionais. Por exemplo, Carson tornou-se conhecido por posições firmes pró-armamentistas e por advogar a inserção da religião no espaço público, posições que entram em conflito com ensinamentos históricos adventistas em favor da não violência, do pacifismo e da separação entre igreja e estado. Em declarações públicas, ele chegou a afirmar, em consonância com sua fé adventista, acreditar que os Estados Unidos terão um grande papel no Apocalipse vindouro. Essa declaração indica que Carson pessoalmente reconhece a visão profética adventista sobre o futuro papel opressor dos EUA. Ainda assim, ele não considera sua atuação atual incompatível com essa crença – uma tensão que alimenta debates sobre até que ponto um político adventista deve ou não se envolver em iniciativas religiosas estatais.
Do ponto de vista pragmático, Carson justifica seu engajamento dizendo defender princípios nos quais acredita, como a liberdade religiosa e os “valores judaico-cristãos” da nação. Durante sua campanha e passagem pelo governo Trump, Carson frequentemente denunciou aquilo que via como restrições indevidas à expressão religiosa – alinhando-se à visão de que a América precisa “retornar a Deus” em esfera pública. Em certa medida, Carson tornou-se uma ponte incomum entre a comunidade adventista e a coalizão evangélica conservadora: sua presença confere diversidade ao grupo de Trump, ao mesmo tempo em que Carson aparenta não ver contradição em colaborar com católicos proeminentes e evangélicos dominantes nas pautas de cristandade nacional. Entretanto, para entendermos plenamente a ironia disso, precisamos revisitar a narrativa profética distintiva da Igreja Adventista do Sétimo Dia, da qual Carson é membro.
A profecia adventista do decreto dominical e a aparente contradição
Desde o século 19, os adventistas do sétimo dia pregam uma interpretação peculiar das profecias bíblicas de Daniel e Apocalipse em relação aos eventos finais da história. Um ponto central dessa escatologia é a crença de que os Estados Unidos, embora fundados na liberdade religiosa, desempenharão um papel de opressor religioso no fim dos tempos. Em termos específicos, a chamada “profecia do decreto dominical” afirma que haverá um decreto ou lei dominical obrigatória impondo a observância do domingo como dia de repouso sagrado, em oposição ao sábado bíblico (o sétimo dia) guardado pelos adventistas. Essa imposição viria através de uma aliança entre o poder religioso apostatado (simbolizado pelo papado e por um protestantismo americano corrompido) e o Estado – cumprindo assim a visão de Apocalipse 13, na qual uma “segunda besta” que surge da terra (identificada pelos pioneiros adventistas como os EUA) faria com que a Terra adore a “primeira besta” (identificada com o poder papal) e sua “imagem”.
Na visão profética adventista tradicional, Estados Unidos + lideranças cristãs (protestantes e católicas) + lei dominical = perseguição aos verdadeiros guardadores do sábado. A liberdade religiosa, em tal contexto, seria corroída por um suposto zelo moral: argumentar-se-ia que a decadência social é fruto da violação do domingo e que somente restaurando o “dia do Senhor” obrigatório a nação retornaria ao favor divino. O resultado final desse processo seria um período de intolerância global contra os que guardam o sábado, visto como desobedientes à nova lei religiosa.
Diante dessa narrativa profundamente enraizada na identidade adventista, a participação de Ben Carson na comissão de liberdade religiosa de Trump adquire um tom ironicamente dramático. Temos, de um lado, a pregação adventista clássica dizendo que, num futuro não muito distante, figuras políticas dos EUA aliadas a líderes religiosos (especialmente evangélicos e católicos) vão promulgar leis religiosas opressoras contra minorias de fé sabatista. E, do outro lado, vemos um adventista proeminente sentando-se à mesa justamente com políticos evangélicos e líderes católicos influentes para aconselhar o governo sobre políticas de “liberdade religiosa” – políticas estas que, segundo críticos, muitas vezes elevam símbolos do cristianismo dominante e podem pavimentar caminho para imposições religiosas por parte do Estado. A foto mental chega a ser simbólica: Carson ao lado de Franklin Graham, Paula White, Timothy Dolan… aliados discutindo como promover a religião na esfera pública. Para um adventista tradicionalista, isso soa quase como o prelúdio do cumprimento da profecia – mas com a peça invertendo papéis, ao incluir um adventista do lado que, teoricamente, seria o dos futuros perseguidores.
Essa contradição não passa despercebida por membros da igreja e observadores. Alguns veem Carson como possivelmente ingênuo em relação às implicações proféticas: ele poderia estar fortalecendo exatamente as forças religiosas-políticas que, segundo sua própria fé, futuramente restringirão a liberdade de minorias sabatistas. Outros, mais céticos quanto à literalidade da profecia, encaram a situação como evidência de que a realidade é mais complexa do que o imaginário apocalíptico – afinal, um adventista sentado com católicos e evangélicos para aconselhar um presidente sugere que o cenário não é de imediata animosidade, mas de cooperação estratégica. De qualquer forma, a ironia histórica é notável.
Entenda
Ben Carson assumir a vice-presidência de uma comissão presidencial sobre liberdade religiosa instaurada por Donald Trump constitui um momento singular que expõe tensões entre convicções religiosas, pragmatismo político e expectativas proféticas. Por um lado, temos a celebração de um adventista ocupando um cargo de destaque na defesa da liberdade de crença – algo que, em princípio, está alinhado com os valores proclamados por sua Igreja. Por outro lado, não podemos ignorar as contradições e ironias gritantes: Carson se engaja em uma iniciativa governamental que, ao mesmo tempo em que fala em liberdade, está imersa em uma agenda de poder religioso. Ele colabora com aqueles que a narrativa adventista clássica identifica como futuros perseguidores dos fiéis do sábado, e ajuda a promover políticas que historicamente sua denominação trataria com ceticismo ou cautela.
Essa dualidade convida a uma reflexão crítica, porém respeitosa. É possível admirar as boas intenções de Carson de querer proteger valores espirituais, mas também é necessário questionar se o caminho escolhido – unir-se a um projeto político-religioso de matiz direitista – realmente promove a liberdade religiosa universal ou apenas a de um grupo específico. A liberdade religiosa genuína implica defender os direitos de todos, inclusive dos que creem diferente de nós. Implica, também, manter o Estado equidistante de disputas teológicas, garantindo que nenhuma maioria imponha seu culto aos demais. Quando líderes religiosos ganham assento em comissões estatais para moldar políticas, ultrapassa-se uma linha tênue rumo a uma potencial “religião civil” obrigatória.
Para os adventistas do sétimo dia, que há décadas pregam sobre um vindouro “decreto dominical”, a situação atual deve servir de alerta e aprendizado. Alianças entre religião e poder político – seja sob o pretexto de proteger a fé, seja com a intenção de moralizar a nação – costumam ter resultados imprevisíveis e, muitas vezes, contraproducentes. A história está repleta de exemplos em que medidas tomadas em nome da religião acabaram cerceando liberdades individuais. Manter uma postura cética e vigilante, como propõe a pergunta inicial deste artigo, é saudável.
Em última instância, a presença de Ben Carson nessa comissão de Trump expõe a complexidade de se viver os princípios da fé adventista num ambiente político polarizado. Ele transita entre dois mundos – o da profecia que o adverte sobre perseguições futuras e o da realpolitik que exige concessões e parcerias improváveis. O resultado até agora é um artigo de contraste: a nação que sua igreja disse que restringiria liberdades hoje o convida para codirigir uma “defesa” da liberdade; o adventista que deveria desconfiar do poder unificado de igrejas e Estado agora aposta em influenciá-lo por dentro. Se haverá consequências positivas ou negativas, só o tempo dirá. Por ora, cabe-nos analisar com honestidade intelectual e espírito crítico essas ironias e contradições, aprendendo com elas para que a liberdade religiosa – verdadeira, ampla e para todos – não se perca em meio aos jogos de poder e narrativas proféticas.
Personalidades e Líderes Mencionados
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Ben Carson – Ex-secretário de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos EUA e membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
Fonte: Biografia oficial de Ben Carson / HUD Archives – https://www.whitehouse.gov/briefings-statements/2025/05/president-trump-announces-religious-liberty-commission-members/ -
Donald J. Trump – Ex-presidente dos Estados Unidos, responsável pela criação da comissão por ordem executiva.
Fonte: White House Executive Orders Archive – Donald Trump, 2020 -
Dan Patrick – Vice-governador do Texas e presidente da nova comissão sobre liberdade religiosa.
Fonte: Office of the Texas Lieutenant Governor -
Franklin Graham – Pastor evangélico e figura influente da direita cristã americana.
Fonte: Billy Graham Evangelistic Association -
Paula White – Televangelista ligada à Casa Branca durante o governo Trump.
Fonte: White House Faith and Opportunity Initiative, 2019 -
Ellen G. White – Autora e profetisa adventista.
Fonte: Obra “O Grande Conflito” / White Estate -
Rabino Meir Soloveichik – Líder judeu ortodoxo e acadêmico.
Fonte: Yeshiva University Faculty Profile -
Cardeal Timothy Dolan – Arcebispo de Nova York.
Fonte: Archdiocese of New York – Official Biography -
Bispo Robert Barron – Líder católico e comunicador.
Fonte: Word on Fire Catholic Ministries -
Barry W. Lynn – Ex-diretor da Americans United.
Fonte: Americans United for Separation of Church and State – Biografia institucional
Instituições e Entidades
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Igreja Adventista do Sétimo Dia
Fonte: Manual da Igreja / Site Oficial da Divisão Norte-Americana (NAD) -
White Estate (Ellen G. White Estate)
Fonte: Centro de Pesquisas Ellen G. White -
Suprema Corte dos Estados Unidos
Fonte: SCOTUSblog / Supreme Court Opinions Database -
Americans United for Separation of Church and State
Fonte: Relatórios institucionais da organização -
Comissão Presidencial sobre Liberdade Religiosa
Fonte: Executive Order Archives – U.S. Federal Register