Introdução
O movimento adventista do sétimo dia frequentemente equipara a palavra “lei” nas Escrituras com os Dez Mandamentos, usando essa associação para argumentar que a guarda do sábado é um requisito perpétuo para os cristãos. No entanto, um estudo cuidadoso do uso da palavra “lei” na Bíblia revela que ela raramente se refere exclusivamente ao decálogo.
O Termo “Lei” no Antigo Testamento
No Antigo Testamento, a palavra hebraica “torah”, geralmente traduzida como “lei”, tem um significado amplo. Ela pode se referir a instruções, ensinos, diretrizes ou mesmo à totalidade da revelação de Deus a Israel [1].
Quando Deus deu Sua lei a Moisés no Monte Sinai, ela incluía não apenas os Dez Mandamentos, mas também uma série de outras leis e ordenanças:
“E deu o Senhor a Moisés, quando acabou de falar com ele no monte Sinai, as duas tábuas do testemunho, tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus. […] Estas são as palavras que o Senhor ordenou a Moisés no monte Sinai, no dia em que ordenou aos filhos de Israel que oferecessem as suas ofertas ao Senhor no deserto do Sinai” (Êxodo 31:18; Levítico 7:38).
Esses textos mostram que a lei dada a Moisés abrangia muito mais do que apenas o decálogo. Incluía leis cerimoniais, civis e morais.
Ellen White, porém, muitas vezes equaciona a lei com os Dez Mandamentos:
“A lei de Deus existia antes da criação do homem ou do contrário Adão não poderia ter pecado. Depois da transgressão de Adão, os princípios da lei não foram mudados, mas foram definidamente arranjados e expressos para atender o homem em sua condição caída” [2].
Essa declaração sugere que a lei existia antes da criação na forma dos Dez Mandamentos, e que eles foram apenas “arranjados e expressos” de maneira diferente após a queda. No entanto, não há evidência bíblica de que o decálogo, incluindo o mandamento do sábado, existisse antes do Sinai.
O Termo “Lei” no Novo Testamento
No Novo Testamento, a palavra grega “nomos”, geralmente traduzida como “lei”, também tem um significado amplo. Pode se referir à lei mosaica como um todo, aos cinco livros de Moisés (Pentateuco), ou a princípios morais em geral [3].
Quando o apóstolo Paulo fala sobre a lei, ele geralmente se refere à totalidade do sistema legal do Antigo Testamento, não apenas aos Dez Mandamentos. Por exemplo:
“Porque todos os que são das obras da lei estão debaixo da maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei, para fazê-las” (Gálatas 3:10).
Aqui, Paulo cita Deuteronômio 27:26, que faz parte das maldições pronunciadas sobre aqueles que desobedecem à lei mosaica. Ele está se referindo à lei como um todo, não apenas ao decálogo.
Ellen White, no entanto, muitas vezes interpreta as referências de Paulo à lei como se referindo especificamente aos Dez Mandamentos:
“Paulo ensina que a lei é santa, e o mandamento, santo, justo e bom, e que não é a lei que morre, mas o pecador; quando as suas transgressões são apagadas pela eficácia do sangue de Cristo, ele é libertado da servidão e condenação da lei, e entra na liberdade e na alegria de Cristo” [4].
Essa interpretação é problemática, pois não leva em conta o contexto mais amplo dos escritos de Paulo sobre a lei. Quando ele fala sobre ser liberto da condenação da lei, ele está se referindo à totalidade do sistema legal do Antigo Testamento, não apenas aos Dez Mandamentos.
A Lei e a Nova Aliança
Com o estabelecimento da nova aliança em Cristo, a relação dos crentes com a lei mudou drasticamente. O próprio Jesus declarou:
“Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim ab-rogar, mas cumprir” (Mateus 5:17).
Jesus não veio abolir os princípios morais da lei, mas cumpri-los perfeitamente em nossa behalf. Ele é o fim da lei para justiça de todo aquele que crê (Romanos 10:4).
Sob a nova aliança, somos justificados pela fé, não pelas obras da lei (Gálatas 2:16). Nossa obediência flui de um coração transformado pelo Espírito, não de uma tentativa de ganhar favor divino pela observância de regras externas.
Ellen White, porém, insiste na continuidade da guarda do sábado sob a nova aliança:
“O sábado, como uma instituição que aponta para Deus como o Criador, nunca será abolido. Subsistirá por toda a eternidade, testemunhando de Deus” [5].
Essa afirmação contradiz o ensino bíblico sobre a relação entre a lei e a graça na nova aliança. Coloca sobre os crentes um jugo de escravidão do qual Cristo nos libertou (Gálatas 5:1).
A visão Adventista
A visão adventista do sétimo dia sobre a guarda mandatória do sábado, a concepção de Ellen White e Joseph Bates, e as interpretações teológicas subsequentes representam um ponto focal de debate teológico dentro do cristianismo. Embora o respeito e a veneração pelo sábado como um dia de descanso e adoração sejam práticas valiosas, a insistência na guarda do sábado como um selo de Deus e um caminho para a salvação desvia-se dos princípios fundamentais do Novo Testamento e da essência do evangelho de Cristo. Este artigo explora dez pontos críticos que destacam por que essa perspectiva está equivocada.
- Interpretação Restritiva da Lei: A visão adventista tradicionalmente equipara a “lei” exclusivamente aos Dez Mandamentos, colocando ênfase desproporcional no sábado. No entanto, o uso bíblico da palavra “lei” (Torah em hebraico e nomos em grego) abrange um espectro muito mais amplo de instruções divinas, não limitadas ao decálogo. Esta interpretação restritiva ignora o contexto mais amplo da lei como um guia holístico para a vida e a piedade, especialmente no Antigo Testamento.
- Conceito de Aliança: Bates, White e outros pioneiros adventistas interpretaram o sábado como um sinal perpétuo da aliança entre Deus e Seu povo. No entanto, o Novo Testamento revela uma nova aliança em Cristo, fundamentada não em observâncias cerimoniais, mas na fé e na graça. Jesus cumpre a lei, transcende as prescrições específicas do Antigo Testamento e inaugura uma nova relação baseada na fé (Hebreus 8:13).
- Justificação pela Fé: A doutrina da justificação pela fé, central para a teologia do Novo Testamento, estabelece que a salvação vem através da fé em Cristo, não pela observância da lei (Romanos 3:28). A ênfase adventista na guarda do sábado como critério para a salvação contraria diretamente este princípio, relegando a graça divina e a obra redentora de Cristo a um plano secundário.
- O Papel de Cristo: A nova aliança destaca Cristo como o cumprimento da lei e o verdadeiro descanso para os crentes (Mateus 11:28-30). Insistir na observância do sábado como essencial para a salvação minimiza o papel salvífico de Jesus e Sua oferta de descanso espiritual que transcende a observância de um dia específico.
- A Prática da Igreja Primitiva: O Novo Testamento documenta a prática da igreja primitiva de reunir-se no primeiro dia da semana, o Dia do Senhor (Atos 20:7), em celebração da ressurreição de Cristo. Essa mudança reflete uma compreensão evoluída da adoração e do descanso, centrada na obra de Cristo, em vez de uma adesão estrita ao sábado judaico.
- Interpretações Proféticas de Ellen White: As visões e interpretações proféticas de Ellen White exerceram influência significativa na doutrina adventista do sábado. Contudo, muitas dessas interpretações carecem de respaldo bíblico sólido e são marcadas por inconsistências e erros interpretativos, especialmente em relação à aplicabilidade da lei mosaica aos cristãos gentios.
- Legalismo versus Liberdade em Cristo: O foco adventista na guarda do sábado introduz um elemento de legalismo que contrasta com a liberdade oferecida em Cristo. Paulo adverte contra tal legalismo, enfatizando que em Cristo somos livres da lei como meio de justificação (Gálatas 5:1).
- A Universalidade do Evangelho: A insistência adventista no sábado como um sinal de lealdade a Deus pode criar barreiras inúteis ao evangelho, que é destinado a todas as pessoas, independentemente de suas tradições culturais ou religiosas. O evangelho de Cristo é universal, transcendendo as prescrições cerimoniais específicas.
- O Sábado no Contexto Bíblico: Embora o sábado tenha um significado importante como dia de descanso e adoração no contexto do Antigo Testamento, sua observância como mandamento obrigatório no Novo Testamento é recontextualizada. A ênfase é deslocada para o descanso espiritual encontrado em Cristo, não na adesão literal a um dia específico. Este ponto central é frequentemente ofuscado nas interpretações adventistas que não reconhecem plenamente a transição da antiga para a nova aliança em termos de práticas de adoração e observância do sábado.
- Identidade e Unidade Cristã: A doutrina adventista do sábado pode inadvertidamente servir como uma fonte de divisão dentro do corpo de Cristo, destacando a observância de um dia sobre a fé compartilhada em Jesus. O Novo Testamento, particularmente nas epístolas de Paulo, enfatiza a unidade dos crentes em Cristo acima das distinções cerimoniais, incluindo dias de adoração específicos (Colossenses 2:16-17). Este ensino promove uma identidade cristã que valoriza a comunhão com Cristo e uns com os outros acima de práticas rituais distintas.
A concepção adventista do sétimo dia sobre a guarda mandatória do sábado para cristãos, sua visão do sábado como selo e caminho para a salvação, embora enraizada na história e na tradição do movimento iniciado por Bates, White e outros, requer reavaliação à luz da teologia bíblica completa. A compreensão do sábado e sua relevância para os cristãos hoje deve ser enraizada na totalidade da revelação bíblica, reconhecendo Cristo como o cumprimento da lei e o centro da nossa fé e prática.
Os adventistas do sétimo dia, assim como todos os cristãos, são convidados a explorar o sábado não apenas como uma questão de observância de um dia específico, mas como um convite ao descanso espiritual e à celebração da redenção em Cristo. Esta perspectiva reconhece o valor e a importância do sábado no contexto bíblico, enquanto centraliza a nova aliança estabelecida através da morte e ressurreição de Jesus como a fundação da nossa salvação e identidade cristã.
Em última análise, o caminho para uma compreensão bíblica e teologicamente sólida do sábado e sua aplicação na vida dos cristãos hoje passa pelo reconhecimento de Jesus como nosso eterno descanso. Neste descanso, encontramos nossa verdadeira justificação, santificação e redenção.
Conclusão
O uso da palavra “lei” na Bíblia raramente se refere exclusivamente aos Dez Mandamentos. Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, a lei geralmente é entendida como a totalidade dos mandamentos e ordenanças dados por Deus, não apenas o decálogo.
Insistir que as referências à lei no Novo Testamento sempre se referem aos Dez Mandamentos, incluindo o sábado, é impor uma interpretação estreita que não leva em conta o contexto mais amplo. Sob a nova aliança, somos chamados a viver pela fé em Cristo, não pela observância legalista de dias especiais.
Nossa verdadeira paz e descanso são encontrados em Cristo, que nos convida a vir a Ele e encontrar descanso para nossas almas (Mateus 11:28-30). Nele, não há condenação (Romanos 8:1), mas vida e liberdade (João 8:36).
Referências
[1] “The Meaning of ‘Torah’ in the Old Testament”, em “Theological Wordbook of the Old Testament”, ed. R. Laird Harris, Gleason L. Archer Jr. e Bruce K. Waltke, pp. 403-405.
[2] Ellen G. White, “Patriarcas e Profetas”, p. 365.
[3] “Nomos”, em “The New International Dictionary of New Testament Theology”, ed. Colin Brown, vol. 2, pp. 439-446.
[4] Ellen G. White, “Mensagens Escolhidas”, vol. 1, p. 234.
[5] Ellen G. White, “Conselhos Sobre a Escola Sabatina”, p. 181.