Amalgamação: Um Embaraço para os Adventistas

Introdução

As declarações de Ellen G. White sobre a “amalgamação de homem e besta” têm sido uma fonte de controvérsia e constrangimento para a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) desde que foram publicadas pela primeira vez em 1864. Essas afirmações chocantes, que sugerem que certas raças humanas são o resultado da procriação entre humanos e animais, levantam sérias questões sobre as alegações proféticas de White e destacam as tensões raciais que permeavam o adventismo em seus primeiros anos. Este artigo examina criticamente as declarações de amalgamação de White, traçando sua origem no contexto do racismo americano do século XIX, analisando as tentativas malsucedidas dos líderes adventistas de explicá-las e avaliando suas implicações mais amplas para a autoridade de White e a integridade teológica do adventismo.

As Declarações de Amalgamação e Seu Contexto Histórico

Em seu livro de 1864, Spiritual Gifts, vol. 3, Ellen White fez duas declarações notórias sobre a “amalgamação” nos tempos antediluvianos que se tornaram uma fonte duradoura de polêmica e embaraço para a IASD. Ela escreveu:

“Mas se houve um pecado acima de outro que exigiu a destruição da raça pelo dilúvio, foi o vil crime de amalgamação de homem e besta que desfigurou a imagem de Deus e causou confusão em toda parte.”[1]

“Cada espécie de animal que Deus havia criado foram preservados na arca. As espécies confusas que Deus não criou, que foram o resultado da amalgamação, foram destruídas pelo dilúvio. Desde o dilúvio tem havido amalgamação de homem e besta, como pode ser visto nas quase infinitas variedades de espécies de animais, e em certas raças de homens.”[2]

Para entender plenamente o significado e o impacto dessas declarações, é crucial situá-las no contexto histórico do racismo americano do século XIX. Na esteira da Guerra Civil e da emancipação dos escravos, muitos brancos americanos, incluindo alguns líderes religiosos, expressaram temores de “amalgamação” racial – um termo usado na época para se referir à miscigenação ou casamento inter-racial.[3] Alguns até argumentaram que os negros eram uma raça sub-humana ou “bestial”, e que o casamento inter-racial era, portanto, uma forma de bestialidade que corrompia a pureza racial branca e ofendia a Deus.[4][5][6]

Foi nesse clima carregado de tensão racial que Ellen White enviou suas declarações de amalgamação para uma igreja composta quase inteiramente por brancos. Dada sua linguagem gráfica descrevendo a amalgamação como um “crime vil” que “desfigurou a imagem de Deus” e trouxe “confusão em toda parte”, é difícil evitar a conclusão de que ela tinha o casamento inter-racial em mente. De fato, de acordo com alguns relatos contemporâneos, quando questionado sobre o significado dos comentários de sua esposa, James White teria dito a um ancião “que a irmã White tinha visto que Deus nunca fez o Negro.”[9] Essa visão era consistente com os próprios sentimentos racistas de Ellen White, como evidenciado por suas declarações posteriores de que “não deveria haver casamento entre as raças branca e negra.”[10]

Tentativas Malsucedidas de Explicação

As declarações de amalgamação de Ellen White provocaram uma controvérsia instantânea quando foram publicadas, com alguns reconhecendo seu conteúdo racista e outros ridicularizando a noção pseudocientífica de que certas raças eram descendentes da procriação entre humanos e animais. Pressionados a responder, os líderes adventistas lutaram para encontrar uma explicação que preservasse a autoridade profética de White enquanto atenuava as implicações mais chocantes de suas afirmações.

Em 1868, Uriah Smith, proeminente líder adventista e editor da Review and Herald, publicou uma defesa das visões de Ellen White na qual ele tentou reinterpretar suas declarações de amalgamação. Argumentando que a linha entre humanos e animais havia sido obscurecida pela atividade antediluviana, Smith sugeriu que os resultados dessa mistura podiam ser vistos em “casos como os selvagens Bosquímanos da África, algumas tribos dos Hotentotes, e talvez os Índios Diggers do nosso próprio país, etc.”[19] Em outras palavras, Smith identificou povos africanos e nativos americanos específicos como as “raças de homens” que Ellen White aludiu como evidência de amalgamação homem-animal.

A explicação de Smith, longe de colocar a controvérsia para descansar, apenas ressaltou as implicações profundamente racistas das afirmações originais de Ellen White. Ao rotular grupos étnicos não-brancos específicos como sub-humanos ou “confusos”, Smith efetivamente codificou o racismo científico do século XIX como doutrina adventista. Sua defesa das declarações de White foi então cuidadosamente revisada por seu marido e circulada com sua bênção, dando o aval da liderança da igreja às opiniões de Smith.[21][22]

À medida que o adventismo se tornou mais globalizado e etnicamente diversificado no século XX, as explicações abertamente racistas de Smith para as declarações de amalgamação de White se tornaram cada vez mais insustentáveis. Estudiosos adventistas posteriores, reconhecendo as armadilhas da interpretação de Smith, ofereceram suas próprias reinterpretações das declarações de White. Francis D. Nichol, por exemplo, sugeriu que White usou “amalgamação” como metáfora para o casamento entre crentes e incrédulos.[23] Outros argumentaram que ela estava se referindo ao cruzamento de diferentes espécies de animais, não à procriação entre humanos e animais.[24]

No entanto, nenhuma dessas explicações alternativas é convincente quando lida à luz do contexto histórico e textual das declarações originais de White. As claras conotações raciais e sexuais de sua linguagem, seu uso da frase “certos homens” e a incapacidade de suas visões de distinguir entre “confusão” moralmente relevante e moralmente neutra, tudo aponta para a inescapável conclusão de que ela abraçou noções racistas comuns em sua época sobre a bestialidade negra e o perigo da miscigenação.

Implicações para a Autoridade de Ellen White e a Integridade do Adventismo

As declarações de amalgamação profundamente problemáticas de Ellen White levantam questões sérias sobre sua confiabilidade como uma fonte de verdade doutrinária e orientação moral para os adventistas do sétimo dia. Se ela pôde estar tão errada em uma questão de tão grande consequência – abraçando e até mesmo espiritualizando os piores preconceitos racistas de seu tempo – como podemos confiar em sua autoridade profética em outros assuntos?

Ainda mais preocupante é a disposição demonstrada dos líderes adventistas, tanto históricos como contemporâneos, de racionalizar ou explicar essas declarações, em vez de reconhecê-las francamente pelo que são: um embaraçoso vestígio do racismo do século XIX que não tem lugar na doutrina cristã. Ao tentar defender o indefensável, esses líderes comprometeram a integridade teológica e moral do adventismo e minaram sua capacidade de falar profeticamente à questão do racismo.

Felizmente, alguns adventistas corajosos começaram a enfrentar esse difícil tema de forma mais direta e honesta. Em 1970, um grupo de estudiosos afro-americanos da IASD publicou uma declaração no periódico da igreja Spectrum, pedindo que as declarações de amalgamação fossem oficialmente rejeitadas como errôneas e retiradas da circulação.[31] Mais recentemente, o ex-pastor da IASD Tyler Francke pediu uma denúncia pública e uma desculpa da liderança da igreja por seu papel histórico na legitimação do racismo através dessas declarações.[32]

Tais esforços apontam um caminho a seguir para os adventistas que buscam redimir o legado profético de sua fundadora sem fugir de suas falhas e limitações humanas. Ao reconhecer honestamente os erros passados, lamentando o prejuízo causado e reafirmando seu compromisso com a igualdade e dignidade humanas, a IASD pode começar o difícil mas necessário trabalho de construir um adventismo mais inclusivo e profeticamente fiel.

Conclusão

As infames declarações de “amalgamação” de Ellen White permanecem uma mancha vergonhosa no legado da IASD e um lembrete contundente dos perigos de elevar mesmo os mais venerados líderes religiosos acima de críticas ou escrutínio. Embora alguns tenham tentado minimizar ou explicar essas afirmações, uma análise honesta revela que elas estão profundamente enraizadas nas atitudes racistas do século XIX que enfatizavam a diferença essencial e a desigualdade das raças.

Para que o adventismo cumpra sua missão profética em um mundo que ainda luta contra o flagelo do racismo, ele deve primeiro enfrentar corajosamente seu próprio passado problemático, incluindo o racismo de sua fundadora. Isso exigirá um doloroso processo de autorreflexão, arrependimento e reforma – um processo que até agora tem sido frustrado pela relutância em questionar a autoridade de Ellen White ou admitir seus erros.

No final, no entanto, esse processo de reforma é essencial não apenas para a integridade do adventismo, mas para seu testemunho mais amplo perante o mundo. Apenas reconhecendo honestamente suas falhas e procurando ativamente corrigi-las, a IASD pode esperar oferecer uma visão profética de cura racial e reconciliação enraizada não no preconceito do passado, mas nas eternas verdades do evangelho.

Referências:


  • 1. WHITE, E. G. Spiritual Gifts, vol. 3, p. 64. [1]
  • 2. Ibid., p. 75. [2]
  • 3. STOKES, M. “Someone’s in the Garden with Eve: Race, Religion, and the American Fall”. American Quarterly, vol. 50, n. 4, 1998. [3]
  • 4. CARTWRIGHT, S. A. “Unity of the Human Race Disproved by the Hebrew Bible”. DeBow’s Review, vol. 29, n. 2, 1860, pp. 129-136. [4]
  • 5. PAYNE, B. H. The Negro: What is His Ethnological Status?. 1867. [5]
  • 6. Ibid., p. 48. [6]
  • 9. SNOOK, B. F.; BRINKERHOFF, W. H. The Visions of E.G. White Not of God, cap. 2. [9]
  • 10. WHITE, E. G. Manuscript 7, 1896. In: Selected Messages, book 2, p. 343, para. 2. [10]
  • 19. SMITH, U. “The Visions of Mrs. E. G. White, A Manifestation of Spiritual gifts According to the Scripture”. Steam Press, Battle Creek, 1868, pp. 103-104. [19]
  • 21. WHITE, J. Review and Herald, 12 de junho de 1866. [21]
  • 22. WHITE, J. Review and Herald, 15 de agosto de 1868. [22]
  • 23. NICHOL, F. D. Ellen G. White and Her Critics. Review and Herald, 1951. [23]
  • 24. SHIGLEY, G. “Amalgamation of Man and Beast: What Did Ellen White Mean?”. Spectrum, vol. 12, no. 4, 1982. [24]
  • 31. “An Open Letter to the Church From Your Black Brothers and Sisters.” Spectrum, vol. 2, no. 4, 1970, pp. 45-50. [31]
  • 32. FRANCKE, T. “Ellen White and the Racist Nonsense of the ‘Amalgamation of Man and Beast.’” A Closer Look at Seventh-day Adventism, 12 de agosto de 2022, https://tinyurl.com/bdej3zb5. Acessado em [inserir data de acesso]. [32]

BÍBLIA. Tradução de João Ferreira de Almeida.

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