Resposta:
A interpretação adventista de Daniel 8:14 e da purificação do santuário celestial a partir de 1844 é um dos pilares doutrinários do movimento. No entanto, um exame mais detalhado do texto e do contexto levanta questões sobre se essa é de fato a única interpretação possível ou mesmo a mais biblicamente embasada.
O texto de Daniel 8:14 diz: “Ele me disse: ‘Até 2.300 tardes e manhãs; então o santuário será reconsagrado’.” Adventistas interpretam isso como se referindo a um período de 2.300 anos, começando em 457 a.C. e terminando em 1844 d.C., quando Cristo teria entrado no Lugar Santíssimo do santuário celestial para começar uma obra de juízo investigativo e purificação.
No entanto, o contexto imediato de Daniel 8 parece indicar que a visão está lidando com eventos relacionados aos impérios Medo-Persa e Grego, e à subsequente profanação do templo por Antíoco IV Epifânio no período macabeu. A purificação do santuário mencionada no versículo 14 seria então a purificação e reconsagração do templo em Jerusalém após a profanação de Antíoco, como registrado em 1 Macabeus 4:36-54.
A interpretação dos 2.300 dias como anos e sua ligação com 1844 dependem de uma série de suposições e cálculos que não são explicitamente estabelecidos no texto. Requerem a ligação de Daniel 8:14 com Daniel 9:24-27 e a profecia das 70 semanas, e a adoção de um “princípio dia-ano” que não é universalmente aplicado na interpretação profética.
Além disso, a noção de um santuário celestial sendo purificado não é claramente apresentada em Daniel 8. O santuário mencionado no contexto parece ser o templo terreno em Jerusalém. Aplicar isso a um santuário celestial e a eventos a partir de 1844 é uma extrapolação que vai além do sentido imediato do texto.
É verdade que a Bíblia fala de um santuário celestial (Hebreus 8:1-2) e de Cristo como nosso Sumo Sacerdote (Hebreus 4:14-16). Mas a ideia de uma purificação do santuário celestial a partir de 1844, paralela ao Dia da Expiação levítico, não é explicitamente ensinada nas Escrituras.
O livro de Hebreus apresenta a obra de Cristo no santuário celestial como uma realidade presente e contínua, não como algo que começou apenas em 1844. Hebreus 9:12 diz: “Não por meio de sangue de bodes e novilhos, mas pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, e obteve eterna redenção”. Isso sugere que a obra expiatória de Cristo foi completa em Sua morte e ressurreição, não que haveria uma obra adicional de purificação do santuário celestial começando em 1844.
Hebreus 9:26 acrescenta: “Agora, porém, ele apareceu uma vez por todas no fim dos tempos, para aniquilar o pecado mediante o sacrifício de si mesmo”. Novamente, o foco está na suficiência e singularidade do sacrifício de Cristo, não em uma purificação posterior do santuário celestial.
Na literatura adventista, o livro “O Grande Conflito” de Ellen G. White é considerado uma exposição autoritativa dessa doutrina do santuário. No entanto, elevar uma interpretação extrabíblica ao nível de autoridade doutrinária levanta questões sobre a suficiência da Escritura.
Portanto, embora a interpretação adventista de Daniel 8:14 e 1844 seja uma tentativa de harmonizar vários temas bíblicos (o santuário, o Dia da Expiação, profecias de tempo), um exame mais detalhado sugere que essa interpretação vai além do claro ensino das Escrituras. Fazer dela um teste de ortodoxia ou um pilar doutrinário indispensável parece dar a ela um peso que o texto bíblico por si só não sustenta. Talvez seja mais sábio ver essa questão como uma interpretação possível, mas não como a única fiel às Escrituras ou como um dogma não negociável.
Texto adventista que confirma a razão da pergunta: “A correta compreensão da ministração do santuário celestial constitui o alicerce da nossa fé.” (Evangelismo, p. 221, Ellen G. White)