A Intercessão Perpétua de Cristo e a Mentira do Juízo Investigativo

Introdução

A doutrina do julgamento investigativo e a ideia de que haverá um tempo em que Jesus cessará sua intercessão pela humanidade são ensinamentos distintivos da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Contudo, uma análise cuidadosa das Escrituras e das interpretações teológicas ao longo dos séculos revela sérias inconsistências nessas doutrinas. Este artigo examinará criticamente esses ensinos à luz da Bíblia e das perspectivas de renomados teólogos, argumentando que Jesus nunca cessará sua intercessão e que o julgamento investigativo não encontra base bíblica sólida.

A Intercessão Eterna de Cristo

A Bíblia apresenta consistentemente Jesus Cristo como o eterno intercessor e mediador entre Deus e a humanidade. Vários textos bíblicos apoiam esta visão:

  • 1. Hebreus 7:25 – “Portanto, ele é capaz de salvar definitivamente aqueles que, por meio dele, aproximam-se de Deus, pois vive sempre para interceder por eles.”
  • Este versículo é particularmente significativo, pois liga diretamente a capacidade de Cristo de salvar à sua intercessão contínua. A frase “vive sempre para interceder” (em grego: πάντοτε ζῶν εἰς τὸ ἐντυγχάνειν) indica claramente uma ação contínua e ininterrupta.
  • 2. Romanos 8:34 – “Quem os condenará? Foi Cristo Jesus que morreu; e mais, que ressuscitou e está à direita de Deus, e também intercede por nós.”
  • O apóstolo Paulo apresenta a intercessão de Cristo como um fato presente e contínuo, parte integrante de sua obra redentora.
  • 3. 1 João 2:1 – “Meus filhinhos, escrevo-lhes estas coisas para que vocês não pequem. Se, porém, alguém pecar, temos um intercessor junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo.”

João usa o presente contínuo para descrever Jesus como nosso intercessor (em grego: παράκλητον ἔχομεν), indicando uma função permanente.

Interpretações Teológicas Históricas

Ao longo da história da igreja, teólogos proeminentes têm consistentemente afirmado a natureza contínua e eterna da intercessão de Cristo:

  • 1. João Calvino (século XVI):
    Em suas “Institutas da Religião Cristã”, Calvino enfatiza: “Cristo intercede continuamente por nós diante do Pai, não apenas por palavras, mas apresentando o sacrifício pelo qual nos reconciliou com Deus.”[1]
  • 2. John Owen (século XVII):
    O teólogo puritano escreveu em “A Morte da Morte na Morte de Cristo”: “A intercessão de Cristo é tão essencial para nossa salvação quanto sua morte expiatória. Ele continua eternamente neste ofício.”[2]
  • 3. Charles Spurgeon (século XIX):
    O famoso pregador batista declarou: “A intercessão de Cristo não é um ato isolado, mas um ministério contínuo. Ele está sempre diante do trono de Deus por nós.”[3]
  • 4. Louis Berkhof (século XX):
    Em sua “Teologia Sistemática”, Berkhof afirma: “A intercessão de Cristo é perpétua e eficaz, garantindo a aplicação dos benefícios de sua obra expiatória a todos os crentes.”[4]

Refutação do Julgamento Investigativo

A doutrina do julgamento investigativo, desenvolvida pelos adventistas do sétimo dia no século XIX, propõe que desde 1844, Cristo está realizando um julgamento dos crentes no santuário celestial. Esta doutrina, no entanto, enfrenta sérias objeções bíblicas e teológicas:

  • 1. Ausência de Base Bíblica Clara:
    Nenhum texto bíblico menciona explicitamente um “julgamento investigativo” começando em 1844 ou em qualquer outra data específica.
  • 2. Contradição com a Justificação pela Fé:
    A ideia de um julgamento investigativo parece contradizer a doutrina bíblica da justificação pela fé, que ensina que os crentes já estão justificados diante de Deus (Romanos 5:1).
  • 3. Interpretação Problemática de Daniel 8:14:
    A interpretação adventista de Daniel 8:14 como base para o julgamento investigativo é questionável. O contexto do capítulo sugere que se refere a eventos históricos relacionados ao templo de Jerusalém, não a um julgamento celestial futuro.
  • 4. Conflito com a Obra Completa de Cristo:
    A noção de um julgamento investigativo parece diminuir a eficácia e completude da obra expiatória de Cristo na cruz (João 19:30 – “Está consumado”).

A Contribuição de Desmond Ford

Dr. Desmond Ford, um teólogo adventista do sétimo dia, desempenhou um papel crucial na crítica interna da doutrina do julgamento investigativo. Em sua monumental apresentação em Glacier View em 1980, Ford argumentou:

  • 1. A interpretação de Daniel 8:14 como base para o julgamento investigativo é insustentável exegeticamente.
  • 2. O livro de Hebreus apresenta Cristo entrando no Lugar Santíssimo celestial imediatamente após sua ascensão, não em 1844.
  • 3. A justificação pela fé, como ensinada por Paulo, exclui a necessidade de um julgamento investigativo dos crentes.

Ford concluiu que a doutrina do julgamento investigativo não tem base bíblica sólida e contradiz aspectos fundamentais do evangelho.[5]

Análise de Textos Bíblicos Chave

1. Daniel 8:14 – “Ele me respondeu: ‘Isso levará 2.300 tardes e manhãs; então o santuário será purificado’.”

Interpretação Adventista: Este versículo é visto como uma profecia apontando para o início do julgamento investigativo em 1844.

Análise Crítica: O contexto histórico e literário de Daniel 8 sugere que este versículo se refere à profanação e subsequente purificação do templo de Jerusalém durante o período macabeu, não a um evento escatológico distante.

2. Hebreus 9:24 – “Pois Cristo não entrou em santuário feito por mãos humanas, que era apenas uma representação do verdadeiro; ele entrou no próprio céu, para agora comparecer por nós diante de Deus.”

Interpretação Adventista: Este versículo é usado para apoiar a ideia de Cristo entrando no Lugar Santíssimo celestial em 1844.

Análise Crítica: O contexto de Hebreus indica que Cristo entrou no santuário celestial imediatamente após sua ascensão, não séculos depois. O autor de Hebreus enfatiza a superioridade e finalidade do sacrifício de Cristo.

3. Apocalipse 14:7 – “Ele dizia em alta voz: ‘Temam a Deus e glorifiquem-no, pois chegou a hora do seu juízo. Adorem aquele que fez os céus, a terra, o mar e as fontes das águas’.”

Interpretação Adventista: Este versículo é frequentemente citado como evidência do julgamento investigativo.

Análise Crítica: O contexto do Apocalipse sugere que este “juízo” se refere ao julgamento final de Deus sobre o mundo, não a um processo investigativo começando em 1844.

A Interpretação Equivocada de Apocalipse 22:11 e a Doutrina da Porta Fechada

Um aspecto crucial da doutrina adventista do julgamento investigativo está ligado à sua interpretação de Apocalipse 22:11, que diz:

“Continue o injusto fazendo injustiça; continue o imundo ainda sendo imundo; continue o justo praticando a justiça; e continue o santo ainda sendo santo.”

Interpretação Adventista: Os adventistas tradicionalmente interpretaram este versículo como indicativo de um momento futuro em que a “porta da salvação” se fechará, pouco antes da segunda vinda de Cristo. Esta interpretação está intimamente ligada à doutrina do julgamento investigativo e à ideia de que haverá um tempo em que Cristo cessará sua intercessão.

A Doutrina da Porta Fechada: Esta interpretação tem raízes na chamada “doutrina da porta fechada”, que foi mantida pelos adventistas primitivos de dezembro de 1844 até aproximadamente 1851. Após o “Grande Desapontamento” de 1844, quando Cristo não retornou conforme esperado, alguns adventistas concluíram que a “porta da graça” havia se fechado para aqueles que rejeitaram a mensagem millerita.[11]

Problemas com esta Interpretação:

  1. Contradição com o Caráter de Deus: A ideia de uma “porta fechada” parece contradizer a natureza misericordiosa e paciente de Deus, como descrita em 2 Pedro 3:9.
  2. Falta de Contexto: A interpretação adventista ignora o contexto literário e histórico do livro do Apocalipse.
  3. Inconsistência com Outros Ensinamentos Bíblicos: Esta interpretação contradiz passagens que falam da oferta contínua do evangelho até a segunda vinda de Cristo (Mateus 24:14).

Interpretação Mais Amplamente Aceita: Estudiosos bíblicos geralmente interpretam Apocalipse 22:11 de maneira diferente:

  1. Urgência Ética: O versículo é visto como uma expressão retórica enfatizando a urgência de fazer escolhas morais corretas no presente, não como uma declaração sobre um futuro “fechamento” da salvação.
  2. Contexto Apocalíptico: No contexto do livro do Apocalipse, este versículo é entendido como parte da descrição do julgamento final, não como um evento separado anterior à segunda vinda.
  3. Paralelo com Daniel 12:10: Muitos estudiosos veem uma conexão com Daniel 12:10, que fala sobre a purificação e refinamento dos justos em tempos de tribulação.
  4. Caráter Fixado: Alguns interpretam o versículo como indicando que, no julgamento final, o caráter de cada pessoa já estará fixado, mas não devido a um decreto arbitrário de Deus, e sim como resultado de suas próprias escolhas ao longo da vida.

A interpretação adventista de Apocalipse 22:11, ligando-o a um fechamento da “porta da salvação” antes da segunda vinda de Cristo, não é sustentada pelo contexto bíblico mais amplo nem pela compreensão teológica predominante. Essa interpretação, reminiscente da antiga “doutrina da porta fechada”, parece mais um resquício de um período específico da história adventista do que uma exegese sólida do texto bíblico.

A Porta da Salvação Sempre Aberta

A ideia de que haverá um tempo em que a “porta da salvação” se fechará antes da segunda vinda de Cristo é problemática por várias razões:

  • 1. Contradiz a Natureza do Evangelho:
    O evangelho é uma oferta contínua de graça e perdão (João 3:16).
  • 2. Limita a Soberania de Deus:
    Estabelecer um “prazo final” para a salvação parece limitar o poder e a misericórdia de Deus.
  • 3. Conflito com Textos Bíblicos:
    Versículos como 2 Pedro 3:9 sugerem que Deus deseja que todos se arrependam, sem indicar um prazo final antes da segunda vinda.

Perspectivas Teológicas Adicionais

1. Martinho Lutero (século XVI):
“A justificação é um ato completo de Deus. Não há necessidade de um julgamento adicional para os crentes.”[6]

2. Jonathan Edwards (século XVIII):
“A intercessão de Cristo é tão eterna quanto seu sacerdócio. Ele nunca cessará de pleitear por seu povo.”[7]

3. Charles Hodge (século XIX):
“A obra de Cristo como nosso Sumo Sacerdote inclui sua intercessão perpétua. Isto é essencial para nossa segurança eterna.”[8]

4. Karl Barth (século XX):
“A intercessão de Cristo é um aspecto de sua obra redentora que continua eternamente. Não há um ponto no tempo em que isso cessa.”[9]

Conclusão

A análise cuidadosa das Escrituras e das interpretações teológicas ao longo dos séculos revela que a doutrina do julgamento investigativo e a ideia de um fim da intercessão de Cristo antes de sua segunda vinda não têm base bíblica sólida. Ao contrário, a Bíblia apresenta consistentemente Jesus Cristo como o eterno intercessor e mediador entre Deus e a humanidade.

A obra de Cristo na cruz é completa e suficiente para nossa salvação. Sua intercessão contínua no céu é uma extensão e aplicação dessa obra redentora, não um processo investigativo ou probatório. A justificação pela fé, um pilar central do evangelho, assegura que os crentes já estão aceitos diante de Deus, não sujeitos a um julgamento investigativo futuro.

As contribuições de teólogos ao longo dos séculos, incluindo a crítica interna significativa de Desmond Ford, reforçam a compreensão da intercessão contínua de Cristo e a natureza problemática do conceito de julgamento investigativo.

Por fim, a ideia de um fechamento da “porta da salvação” antes da segunda vinda de Cristo parece contradizer a natureza do evangelho como uma oferta contínua de graça. Isso não significa que não haverá um julgamento final, mas sim que este julgamento ocorrerá na segunda vinda de Cristo, não como um processo investigativo prévio.

Em suma, a fé cristã repousa na confiança na obra completa de Cristo e em sua intercessão contínua, não em um processo de julgamento investigativo ou em um prazo final para a salvação. Esta compreensão oferece segurança e esperança aos crentes, fundamentada na graça inesgotável de Deus e no amor eterno de Cristo.

Referências

  • [1] Calvino, João. As Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Editora Unesp, 2008.
  • [2] Owen, John. The Death of Death in the Death of Christ. Edinburgh: Banner of Truth Trust, 2007.
  • [3] Spurgeon, Charles H. Sermons of Rev. C.H. Spurgeon of London. New York: Funk & Wagnalls, 1892.
  • [4] Berkhof, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.
  • [5] Ford, Desmond. Daniel 8:14, The Day of Atonement, and the Investigative Judgment. Casselberry, FL: Euangelion Press, 1980.
  • [6] Lutero, Martinho. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, 1987.
  • [7] Edwards, Jonathan. The Works of Jonathan Edwards. Peabody, MA: Hendrickson Publishers, 2004.
  • [8] Hodge, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001.
  • [9] Barth, Karl. Church Dogmatics. Edinburgh: T&T Clark, 2004.
  • [10] Bíblia Sagrada, Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida Nova, 2000.
  • [11] Knight, George R. Millenial Fever and the End of the World. Boise, ID: Pacific Press Publishing Association, 1993.

Outros Artigos

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