As Primeiras Visões de Ellen White e a Apócrifa
As visões iniciais de Ellen White sobre a Apócrifa, ocorridas em 1849 e 1850, são fundamentais para entender sua perspectiva sobre estes textos controversos. Estas revelações, que permaneceram em grande parte desconhecidas até recentemente, oferecem insights valiosos sobre a compreensão de Ellen White acerca da inspiração e do cânone bíblico.
A visão de setembro de 1849, transcrita por uma testemunha ocular, é particularmente reveladora:
“Pegando a grande Bíblia contendo a Apócrifa… pura e imaculada… uma parte dela é consumida… santa, santa, ande cuidadosamente… tentado a palavra de Deus… pegue-a… e amarre-a longamente sobre teu coração… pura e imaculada… Ó as crianças, crianças da desobediência… repreendidas… Tua palavra, Tua palavra, Tua palavra… uma parte dela é queimada… O livro oculto, uma parte dele é queimada… a Apócrifa.”
Nesta visão, Ellen White parece equiparar a Apócrifa com a “palavra de Deus”. A repetição de “pura e imaculada” em referência à Bíblia que contém a Apócrifa é significativa, sugerindo que ela via esses textos como parte integrante da revelação divina. A menção ao “livro oculto” parece ser uma referência direta à Apócrifa, indicando um status especial para estes textos.
A visão subsequente de janeiro de 1850 (Manuscrito 4, 1850) fornece mais detalhes:
“Vi então a palavra de Deus, pura e imaculada, e que devemos responder pela maneira como recebemos a verdade proclamada daquela palavra. Vi que era um martelo para quebrar o coração empedernido em pedaços e um fogo para consumir a escória, para que o coração pudesse ser puro e santo. Vi que a Apócrifa era o livro oculto, e que os sábios destes últimos dias deveriam entendê-lo. Vi que a Bíblia era o livro padrão que nos julgará no último dia.”
Esta visão é notável por várias razões:
- 1. Ellen White novamente se refere à “palavra de Deus” como “pura e imaculada”, um contexto no qual ela então menciona a Apócrifa.
- 2. Ela descreve a Apócrifa como “o livro oculto”, ecoando a linguagem da visão anterior.
- 3. Há uma distinção clara entre a “Apócrifa” e a “Bíblia”, que é chamada de “o livro padrão”.
- 4. Significativamente, ela afirma que “os sábios destes últimos dias deveriam entendê-lo [o livro oculto]”, sugerindo um valor contínuo e relevância para a Apócrifa.
Estas visões indicam que Ellen White via a Apócrifa como parte da “palavra de Deus”, mas com um status distinto da Bíblia canônica. Pode-se inferir um modelo em que a “palavra de Deus” contém dois elementos para Ellen White: o “livro padrão” (a Bíblia) e o “livro oculto” (a Apócrifa).
Este entendimento sugere uma visão mais nuançada da inspiração e canonicidade do que geralmente se atribui a Ellen White. Parece que ela considerava a Apócrifa como inspirada, mas não necessariamente no mesmo nível de autoridade que os livros canônicos.
É crucial notar que estas visões não foram amplamente divulgadas na época. Ellen White não promoveu ativamente estas visões em seus escritos públicos posteriores, o que levanta questões importantes sobre como isso pode ter afetado o desenvolvimento da teologia adventista.
A descoberta recente destas visões tem implicações significativas para a compreensão adventista da história denominacional e da hermenêutica de Ellen White. Elas desafiam noções simplistas sobre suas visões e convidam a uma reavaliação cuidadosa de seu pensamento teológico inicial e seu desenvolvimento ao longo do tempo.
James White e as Referências Apócrifas
O papel de James White na inclusão de referências apócrifas em publicações adventistas iniciais é um aspecto crucial para entender a relação do adventismo primitivo com a Apócrifa. Sua abordagem desses textos, especialmente em publicações como “A Word to the Little Flock” (1847), oferece insights valiosos sobre como os primeiros líderes adventistas viam a Apócrifa em relação às Escrituras canônicas.
Em maio de 1847, James White publicou um folheto intitulado “A Word to the Little Flock”, que incluía referências à Apócrifa, especificamente ao livro de 2 Esdras. Este documento é particularmente significativo porque James White explicitamente rotulou essas referências como “Escritura”. Como ele mesmo afirmou:
“Eu incluí notas de rodapé das Escrituras, então Esdras e Sabedoria de Salomão são chamados de escrituras junto com Salmos, Apocalipse, e todos os outros.” (A Word to the Little Flock, 1847)
Esta inclusão é notável por várias razões:
- 1. Demonstra que James White considerava partes da Apócrifa como “Escritura”, colocando-as no mesmo nível de autoridade que os livros canônicos.
- 2. Sugere que, no início do movimento adventista, não havia uma distinção rígida entre os livros canônicos e os apócrifos em termos de inspiração ou autoridade.
- 3. Indica que o uso da Apócrifa não era visto como problemático ou controverso pelos primeiros líderes adventistas.
É importante notar que o folheto de James White incluía escritos de Ellen White, incluindo sua carta publicada originalmente no Day Star. Ao republicar esta carta em “A Word to the Little Flock”, James White adicionou notas de rodapé com mais de 40 referências bíblicas, incluindo seis referências a 2 Esdras e uma à Sabedoria de Salomão.
Estas referências não eram meras adições superficiais de James White. Um exame cuidadoso revela que as próprias visões de Ellen White demonstram em sua linguagem que ela deliberadamente se baseou nestes textos apócrifos para suas imagens. Exemplos concretos incluem:
- – A descrição de Jesus colocando coroas nas cabeças dos santos, que ecoa 2 Esdras 2:43,46,47: “E no meio deles havia um jovem de alta estatura, mais alto que todos os outros, e sobre a cabeça de cada um deles ele colocava coroas…”
- – A referência a nuvens escuras se chocando, que se assemelha a 2 Esdras 15:34,35,40: “Eis que vêm nuvens do oriente e do norte até o sul, e elas são muito horríveis de se olhar, cheias de ira e tempestade.”
- – A descrição do Monte Sião e das sete montanhas com rosas e lírios, que parece derivar de 2 Esdras 2:19,42: “Eu, Esdras, vi sobre o monte Sião uma grande multidão… E muitas fontes fluindo com leite e mel, e sete poderosas montanhas, sobre as quais crescem rosas e lírios…”
Além disso, o estudioso Ronald Graybill descobriu uma oitava alusão à Apócrifa não notada por James White, relacionada a 2 Esdras 2:47, onde Ellen White usa a frase “stood stiffly for my truth” (permaneceram firmes pela minha verdade), que ecoa diretamente o texto apócrifo.
É crucial entender que a inclusão da Apócrifa nas Bíblias protestantes era uma prática comum na época. Muitas Bíblias familiares de tamanho grande incluíam a Apócrifa entre os dois testamentos. Portanto, os primeiros adventistas, incluindo James e Ellen White, estavam operando dentro de um contexto onde esses textos eram considerados parte padrão da Bíblia.
A abordagem de James White à Apócrifa levanta questões importantes sobre a compreensão dos primeiros adventistas sobre o cânone bíblico e como essa visão inclusiva da Apócrifa se alinhava com a teologia adventista em desenvolvimento. Também nos leva a questionar por que essa perspectiva sobre a Apócrifa não se tornou uma parte mais proeminente da teologia adventista posterior.
O uso da Apócrifa por James White, especialmente sua designação explícita desses textos como “Escritura”, sugere que o adventismo primitivo tinha uma visão mais flexível e inclusiva do cânone bíblico do que geralmente se assume. Esta abordagem parece estar em harmonia com as visões de Ellen White sobre a Apócrifa, reforçando a ideia de que os primeiros líderes adventistas viam esses textos como parte legítima da revelação divina.
Esta prática de James White nos convida a reconsiderar não apenas a história do adventismo, mas também como o movimento entendeu e definiu conceitos como inspiração, cânone e autoridade escriturística. Sua abordagem à Apócrifa oferece uma janela para um período formativo do adventismo, onde as fronteiras entre o canônico e o não-canônico eram mais fluidas do que se tornariam posteriormente.
A Carta de William White de 1911
Uma descoberta recente e significativa na compreensão da relação de Ellen White com a Apócrifa é uma carta escrita por seu filho, William White, em 1911. Esta correspondência, datada de 21 de maio de 1911, foi endereçada a Guy Dail e contém informações cruciais sobre as opiniões de Ellen White a respeito da Apócrifa.
O conteúdo relevante da carta afirma:
“Em alguns dos antigos escritos de Mãe, ela fala da Apócrifa e diz que partes dela eram inspiradas.” (Carta de William White a Guy Dail, 21 de maio de 1911)
Esta declaração de William White é profundamente significativa por várias razões:
- 1. Confirmação de Primeira Mão: Como filho de Ellen White e um de seus assistentes mais próximos, William White tinha acesso direto não apenas aos escritos de sua mãe, mas também às suas opiniões pessoais. Sua afirmação serve como uma confirmação de primeira mão das visões de Ellen White sobre a Apócrifa.
- 2. Persistência da Crença: A carta foi escrita em 1911, apenas quatro anos antes da morte de Ellen White. Isso sugere que sua crença na inspiração de partes da Apócrifa não era apenas uma noção de juventude, mas uma perspectiva que ela manteve ao longo de sua vida.
- 3. Nuance na Compreensão: A afirmação de que “partes dela eram inspiradas” indica uma visão matizada da Apócrifa. Ellen White aparentemente não considerava toda a Apócrifa como igualmente inspirada, mas reconhecia inspiração em certas partes.
- 4. Ausência de Retratação: É notável que William White não oferece nenhuma qualificação ou sugestão de que Ellen White havia mudado de opinião sobre este assunto. Isso implica que, até onde ele sabia, ela nunca expressou uma visão contrária sobre a Apócrifa.
- 5. Contexto Histórico: Em 1911, a discussão sobre o status da Apócrifa não era uma questão proeminente no adventismo. A menção casual de William White a esta crença de sua mãe sugere que não era vista como particularmente controversa ou problemática na época.
Esta carta de William White serve como uma ponte crucial entre as visões iniciais de Ellen White sobre a Apócrifa e seu ministério posterior. Ela sugere uma continuidade em seu pensamento que não foi amplamente reconhecida ou discutida na historiografia adventista tradicional.
Além disso, a carta levanta várias questões importantes:
- 1. Por que Ellen White não abordou publicamente suas opiniões sobre a inspiração da Apócrifa em seus escritos posteriores?
- 2. Como essa crença na inspiração parcial da Apócrifa se alinhava com a compreensão adventista da inspiração e do cânone bíblico?
- 3. Que implicações essa revelação tem para a hermenêutica adventista e a compreensão dos escritos de Ellen White?
É importante notar que esta carta permaneceu desconhecida por muitos anos e só recentemente veio à luz através de pesquisas acadêmicas. Sua descoberta desafia narrativas simplificadas sobre as visões de Ellen White e convida a uma reavaliação mais ampla de seu pensamento teológico.
A carta de 1911 de William White oferece uma evidência convincente de que Ellen White manteve uma visão positiva da inspiração parcial da Apócrifa ao longo de sua vida. Esta revelação abre novas avenidas para a pesquisa e reflexão teológica dentro do adventismo, convidando a uma reconsideração cuidadosa de como a denominação entende e interpreta sua própria história e herança teológica.
Além disso, esta descoberta se alinha com as evidências encontradas nos escritos de Ellen White ao longo de sua vida, onde ela continuou a fazer referências e alusões a textos apócrifos. Isso sugere que sua visão inicial da Apócrifa como parte da “palavra de Deus” não foi uma fase passageira, mas uma compreensão duradoura que influenciou seu pensamento e escritos por décadas.
Esta continuidade em seu pensamento desafia a noção de que Ellen White abandonou ou rejeitou a Apócrifa após suas primeiras visões. Em vez disso, sugere uma relação contínua e complexa com estes textos, que ela aparentemente via como fontes valiosas de verdade espiritual, mesmo que não os considerasse no mesmo nível que os livros canônicos.
A carta de William White, portanto, não apenas fornece uma visão crucial das opiniões pessoais de Ellen White, mas também serve como um ponto de partida para uma reavaliação mais ampla de como o adventismo entende sua própria história, a natureza da inspiração e o papel de textos não canônicos na formação do pensamento teológico.
O Uso Contínuo da Apócrifa por Ellen White
Contrariamente à crença comum de que Ellen White abandonou o uso da Apócrifa após suas primeiras visões, evidências recentes sugerem que ela continuou a fazer referência e aludir a textos apócrifos ao longo de sua carreira de escrita. Esta descoberta tem implicações significativas para nossa compreensão do pensamento teológico de Ellen White e sua abordagem às fontes escriturísticas.
Um estudo detalhado revelou que Ellen White fez “uso extensivo da Apócrifa não apenas nos anos anteriores a seus comentários em 1850, mas muito depois, concluindo apenas perto de sua morte”. Este padrão de uso sugere uma continuidade em sua visão da Apócrifa como uma fonte valiosa de inspiração espiritual.
Exemplos específicos de uso incluem:
1. Sabedoria de Salomão: Ellen White parece ter feito referências frequentes a este livro apócrifo, incorporando suas ideias em seus próprios escritos. Por exemplo:
- – Em 1870, ela conecta as ideias de Satanás, Inveja, a Queda de Adão e Eva, e as consequências da morte, todos em um contexto que parece derivar de Sabedoria 2:24.
- – Ela usa repetidamente a frase “equidade e justiça”, que é única à Sabedoria de Salomão em sua Bíblia King James.
2. Segundo Esdras: Alusões a este texto continuaram a aparecer em seus escritos, ecoando temas e linguagem deste livro apócrifo. Por exemplo:
- – Em uma visão de setembro de 1850, Ellen White parece abreviar a visão registrada em 2 Esdras 13, incluindo detalhes como fogo saindo da boca de Jesus para consumir os ímpios.
- – Em 1862, ela se refere a Esdras como um profeta, uma descrição encontrada apenas em 2 Esdras.
- – Em 1872, ela descreve Jesus como mais alto que os anjos, uma referência tirada da mesma visão de Esdras que ela usou em sua primeira visão de 1847.
3. Primeiro e Segundo Macabeus: Ellen White extraiu material destes livros, particularmente em relação a narrativas históricas. Por exemplo:
- – Ela faz referências à ideia de que o dom de profecia desapareceu por alguns séculos, um conceito que se origina em 1 Macabeus 9:27.
- – Em 1898, ela parece aludir aos eventos de 1 Macabeus ao discutir a profecia de Daniel.
4. Adições apócrifas a Daniel: Há evidências de que ela utilizou material destas seções em seus comentários sobre Daniel. Por exemplo:
- – Em 1902, ela faz uma analogia entre Daniel e tribunais legais, uma conexão que só existe na história apócrifa de Susana.
5. Adições apócrifas a Ester: Ellen White parece ter incorporado detalhes das adições gregas a Ester em seus escritos. Por exemplo:
- – Ela frequentemente se refere às orações de Ester, um elemento ausente do livro canônico de Ester, mas presente nas adições apócrifas.
A natureza deste uso é particularmente significativa. Ellen White parece ter tratado as referências apócrifas de maneira similar às suas citações de textos canônicos, sugerindo que ela via estes livros como tendo um grau de autoridade espiritual.
É importante notar que o uso da Apócrifa por Ellen White não era indiscriminado. Ela parece ter sido seletiva em seu uso, focando em certos livros e temas. Isso sugere uma abordagem ponderada e teologicamente informada aos textos apócrifos, em vez de uma aceitação acrítica de todo o material.
A descoberta do uso contínuo da Apócrifa por Ellen White desafia a narrativa tradicional de que ela abandonou estes textos após suas primeiras visões. Em vez disso, sugere uma relação contínua e complexa com a Apócrifa ao longo de sua vida e ministério.
Esta evidência convida a uma reavaliação da hermenêutica de Ellen White e de sua compreensão das fontes de inspiração espiritual. Também levanta questões importantes sobre como o adventismo contemporâneo deve entender e abordar estes textos à luz desta nova compreensão do pensamento de Ellen White.
O uso contínuo da Apócrifa por Ellen White oferece uma janela fascinante para seu processo de pensamento teológico e sua abordagem à revelação divina. Isso sugere uma visão mais inclusiva e nuançada da inspiração do que muitas vezes se supõe, convidando a um estudo mais aprofundado e a uma reflexão cuidadosa sobre o lugar destes textos na teologia e na prática adventista.
Contexto Histórico da Apócrifa nas Bíblias Protestantes
Para compreender plenamente a relação de Ellen White e dos primeiros adventistas com a Apócrifa, é crucial examinar o contexto histórico mais amplo da Apócrifa nas Bíblias protestantes. Contrariamente à percepção comum, a inclusão da Apócrifa em Bíblias protestantes era a norma, não a exceção, até o início do século XIX.
Fatos históricos importantes:
1. Reforma Protestante: Contrário à crença popular, Martinho Lutero não rejeitou a Apócrifa. Ele a incluiu em sua tradução da Bíblia para o alemão, embora a tenha colocado em uma seção separada entre o Antigo e o Novo Testamento. Outros reformadores, como Calvino, também tinham visões nuançadas sobre a Apócrifa. Por exemplo, Calvino acreditava que o livro apócrifo de Baruc era canônico e deveria ser incluído junto com Jeremias.
2. Versão King James: A Versão King James (KJV), publicada em 1611, incluía a Apócrifa. De fato, o Rei James I tornou ilegal a impressão da Bíblia sem a Apócrifa. Esta versão era amplamente utilizada pelos primeiros adventistas, incluindo Ellen White.
3. Uso Generalizado: Até o início do século XIX, a maioria das Bíblias protestantes, incluindo aquelas usadas pelos primeiros adventistas, continham a Apócrifa. Estas eram frequentemente Bíblias de tamanho familiar, com a Apócrifa posicionada entre o Antigo e o Novo Testamento.
4. Ponto de Virada: Em 1827, a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira tomou a decisão de remover a Apócrifa das Bíblias que enviava para missões, principalmente por razões econômicas. Esta decisão marcou um ponto de inflexão na atitude protestante em relação à Apócrifa.
5. Declínio Gradual: Após esta decisão, houve um declínio gradual na inclusão da Apócrifa em Bíblias protestantes, levando à situação atual onde muitos protestantes não estão familiarizados com estes textos.
Este contexto histórico é crucial por várias razões:
- 1. Familiaridade: Ellen White e os primeiros adventistas teriam estado familiarizados com a Apócrifa como parte de suas Bíblias. Não era vista como um conjunto de textos “católicos” ou estranhos, mas como uma parte integral da Bíblia que eles conheciam e usavam.
- 2. Autoridade Percebida: A inclusão da Apócrifa nas Bíblias protestantes, incluindo a KJV, conferia a estes textos um grau de autoridade e aceitação entre os protestantes. Isso ajuda a explicar por que Ellen White e outros líderes adventistas iniciais se sentiam à vontade para citar e fazer referência a estes textos.
- 3. Transição Gradual: A mudança na percepção da Apócrifa foi gradual. Durante o tempo de vida de Ellen White, houve uma transição de aceitação geral para uma visão mais cética destes textos. Isso pode explicar por que suas referências à Apócrifa se tornaram menos explícitas ao longo do tempo, embora ela continuasse a incorporar ideias destes textos em seus escritos.
- 4. Complexidade Teológica: As atitudes dos reformadores protestantes em relação à Apócrifa eram mais complexas do que frequentemente se assume. Isso fornece um precedente histórico para a abordagem nuançada de Ellen White a estes textos.
- 5. Contexto Adventista: O surgimento do movimento adventista coincidiu com este período de transição na atitude protestante em relação à Apócrifa. Isso ajuda a explicar as tensões e complexidades na abordagem adventista a estes textos.
A compreensão deste contexto histórico ajuda a explicar por que Ellen White e James White não viam o uso da Apócrifa como problemático ou controverso. Eles estavam operando dentro de uma tradição protestante que, até recentemente, havia aceito estes textos como parte da Bíblia.
Além disso, este contexto desafia a noção de que a aceitação da Apócrifa era uma posição “católica”. Na realidade, foi uma parte padrão da herança protestante por séculos após a Reforma. Esta compreensão nos permite interpretar o uso da Apócrifa por Ellen White não como uma anomalia, mas como uma continuação de uma longa tradição protestante.
A mudança gradual na percepção da Apócrifa durante o século XIX coincidiu com o surgimento do movimento adventista. Isso pode explicar por que, embora Ellen White continuasse a usar e valorizar a Apócrifa, ela não a promoveu publicamente de maneira mais enfática em seus escritos posteriores.
O contexto histórico da Apócrifa nas Bíblias protestantes fornece uma base crucial para entender as atitudes de Ellen White e dos primeiros adventistas em relação a estes textos. Reconhecer este contexto nos permite interpretar suas ações e escritos de maneira mais precisa, evitando anacronismos e entendendo melhor a complexidade de suas posições teológicas.
A Visão de Ellen White sobre Inspiração e Canonicidade
As declarações e o uso contínuo da Apócrifa por Ellen White oferecem insights valiosos sobre sua compreensão de inspiração e canonicidade. Sua abordagem sugere uma visão mais nuançada e complexa desses conceitos do que geralmente se atribui a ela.
Elementos-chave da visão de Ellen White:
- 1. Inspiração Além do Cânone: As visões de Ellen White e seu uso contínuo da Apócrifa indicam que ela reconhecia inspiração divina em textos fora do cânone protestante padrão. Isso é evidenciado por suas referências diretas à Apócrifa como parte da “palavra de Deus” em suas visões iniciais e seu uso contínuo desses textos ao longo de sua vida.
- 2. Níveis de Autoridade: Em sua visão de 1850, Ellen White faz uma distinção entre a “Bíblia” como o “livro padrão” e a Apócrifa como o “livro oculto”. Isso sugere que ela reconhecia diferentes níveis de autoridade dentro dos textos inspirados. Esta distinção é crucial para entender sua abordagem à canonicidade.
- 3. Inspiração Parcial: A carta de William White de 1911 menciona que Ellen White considerava “partes” da Apócrifa como inspiradas, indicando uma visão de inspiração que não era necessariamente aplicada a textos inteiros, mas poderia ser seletiva. Isso sugere uma compreensão mais matizada da inspiração do que uma abordagem de “tudo ou nada”.
- 4. Relevância Contínua: A afirmação de que “os sábios destes últimos dias deveriam entendê-lo [o livro oculto]” sugere que Ellen White via uma relevância contínua nos textos apócrifos, mesmo que não os considerasse no mesmo nível que os livros canônicos. Isso indica uma visão dinâmica da revelação divina.
- 5. Uso Integrado: O estudo de Korpman revela que Ellen White continuou a integrar referências e alusões à Apócrifa em seus escritos ao longo de sua vida, tratando-os de maneira similar aos textos canônicos. Isso sugere que ela via esses textos como fontes legítimas de verdade espiritual.
Implicações para a compreensão de inspiração:
- 1. Inspiração Dinâmica: A abordagem de Ellen White sugere uma visão de inspiração que não está limitada a um cânone fechado, mas pode ser encontrada em uma variedade de fontes. Isso é evidenciado por seu uso contínuo de textos apócrifos como 2 Esdras, Sabedoria de Salomão e Macabeus.
- 2. Discernimento Espiritual: Sua ênfase em que os “sábios” deveriam entender a Apócrifa implica a necessidade de discernimento espiritual ao abordar textos inspirados. Isso sugere que Ellen White via a inspiração não apenas como uma qualidade inerente ao texto, mas também como algo que requer interpretação e compreensão ativa por parte do leitor.
- 3. Continuidade da Revelação: O uso contínuo da Apócrifa por Ellen White sugere uma crença na relevância contínua de textos antigos para a compreensão espiritual contemporânea. Isso é particularmente evidente em seu uso de 2 Esdras para interpretar eventos escatológicos.
- 4. Inspiração Contextual: O uso de Ellen White de diferentes livros apócrifos para diferentes propósitos (por exemplo, 2 Esdras para visões escatológicas, Sabedoria de Salomão para princípios morais) sugere uma compreensão contextual da inspiração, onde diferentes textos podem ser inspirados de maneiras diferentes.
Implicações para a compreensão de canonicidade:
- 1. Cânone Flexível: A inclusão da Apócrifa como parte da “palavra de Deus” sugere uma visão mais flexível do cânone do que a posição protestante tradicional. Isso é reforçado pelo uso contínuo que Ellen White faz desses textos ao longo de sua vida.
- 2. Hierarquia de Textos: A distinção entre o “livro padrão” e o “livro oculto” indica uma possível hierarquia de textos inspirados, com diferentes níveis de autoridade. Isso sugere que Ellen White via o cânone não como uma categoria binária, mas como um espectro de autoridade.
- 3. Função sobre Forma: O foco de Ellen White parece estar mais na função espiritual dos textos (edificação, instrução) do que em seu status canônico formal. Isso é evidenciado por seu uso de textos apócrifos para extrair lições espirituais e morais, similar ao seu uso de textos canônicos.
- 4. Cânone Aberto: O uso contínuo de Ellen White de textos apócrifos, mesmo após o estabelecimento formal do adventismo, sugere que ela pode ter mantido uma visão de um “cânone aberto” em algum sentido, onde textos além do cânone protestante padrão ainda poderiam ter valor espiritual e autoridade.
- 5. Autoridade Progressiva: A maneira como Ellen White integra textos apócrifos com textos canônicos em seus escritos sugere uma visão de autoridade progressiva, onde textos podem ganhar ou perder autoridade com base em sua utilidade espiritual contínua.
Desafios e Questões:
- 1. Como reconciliar esta visão mais inclusiva de inspiração com as declarações posteriores da Igreja Adventista sobre o cânone? A abordagem de Ellen White parece estar em tensão com a posição oficial posterior da igreja.
- 2. Como esta compreensão de inspiração e canonicidade afeta a interpretação dos próprios escritos de Ellen White? Se ela via inspiração de maneira tão fluida, como isso impacta a maneira como seus próprios escritos são vistos dentro do adventismo?
- 3. Que implicações essa visão tem para a hermenêutica adventista contemporânea? A abordagem de Ellen White sugere a necessidade de uma hermenêutica mais nuançada e contextual.
- 4. Como o uso de Ellen White de textos apócrifos para interpretar profecias (como no caso de 2 Esdras e Daniel) afeta a compreensão adventista da profecia bíblica?
- 5. Se Ellen White via partes da Apócrifa como inspiradas, isso abre a possibilidade de outros textos extra-canônicos serem considerados inspirados? Quais seriam os critérios para tal determinação?
A abordagem de Ellen White à inspiração e canonicidade, conforme evidenciada por sua relação com a Apócrifa, apresenta um desafio ao pensamento adventista tradicional sobre esses temas. Ela sugere uma compreensão mais fluida e dinâmica da revelação divina, que reconhece a possibilidade de inspiração além dos limites estritos do cânone protestante.
Esta visão convida a uma reconsideração cuidadosa de como o adventismo entende a inspiração, não apenas em relação à Bíblia e aos escritos de Ellen White, mas também potencialmente a outras fontes de insight espiritual. Também levanta questões importantes sobre como a igreja deve abordar textos que estão fora do cânone tradicional, mas que podem conter verdades espirituais valiosas.
O uso contínuo de Ellen White de textos apócrifos, mesmo em seus escritos posteriores, sugere que ela manteve uma visão consistente da inspiração e canonicidade ao longo de sua vida. Isso desafia a noção de que suas visões iniciais sobre a Apócrifa foram uma fase passageira ou um erro de juventude.
Além disso, a maneira como Ellen White integrou conceitos e linguagem de textos apócrifos em suas próprias visões e escritos sugere que ela via esses textos não apenas como histórica ou culturalmente interessantes, mas como genuinamente inspirados e relevantes para a compreensão espiritual contemporânea.
A visão de Ellen White sobre inspiração e canonicidade, conforme refletida em sua abordagem à Apócrifa, oferece um modelo mais inclusivo e nuançado do que muitas vezes se assume. Isso convida a uma reflexão teológica mais profunda sobre esses conceitos fundamentais e suas implicações para a fé e prática adventista. Também nos desafia a considerar como podemos manter um equilíbrio entre a fidelidade à revelação divina e a abertura à orientação contínua do Espírito em nossa compreensão e aplicação das Escrituras.
O Papel do White Estate
O White Estate, encarregado de preservar e promover o legado de Ellen White, desempenhou um papel significativo na forma como as informações sobre a relação de Ellen White com a Apócrifa foram tratadas ao longo dos anos. A abordagem do White Estate a este assunto evoluiu com o tempo, refletindo mudanças nas atitudes denominacionais e na pesquisa acadêmica.
Aspectos-chave do papel do White Estate:
- 1. Restrição Inicial de Acesso: Por muitos anos, o White Estate restringiu o acesso a certos documentos relacionados às visões de Ellen White sobre a Apócrifa. Esta prática foi justificada como uma tentativa de evitar mal-entendidos e controvérsias.
- 2. Divulgação Gradual: Com o tempo, o White Estate começou a divulgar mais informações, culminando na publicação de documentos-chave em 1985, incluindo o Manuscrito 4 de 1850.
- 3. Interpretação Cautelosa: Mesmo quando os documentos foram disponibilizados, o White Estate frequentemente ofereceu interpretações cautelosas, enfatizando o contexto histórico e minimizando as implicações teológicas.
- 4. Mudança na Política de Transparência: Nas últimas décadas, houve uma mudança para maior transparência, com mais documentos sendo disponibilizados para pesquisa acadêmica.
Documentos e Decisões Significativas:
- 1. Memorando Interno de 1970: Arthur White, neto de Ellen White, escreveu um memorando interno discutindo como lidar com declarações “isoladas” de Ellen White, incluindo suas referências à Apócrifa. Este documento revelou a luta interna do White Estate para contextualizar essas declarações.
- 2. Publicação de 1985: A decisão de publicar o Manuscrito 4 de 1850 marcou uma mudança significativa na política do White Estate, tornando públicas as declarações de Ellen White sobre a Apócrifa.
- 3. Carta de William White de 1911: A recente descoberta e divulgação desta carta, que confirma a crença de Ellen White na inspiração parcial da Apócrifa, representa um novo nível de transparência.
Implicações e Desafios:
- 1. Evolução da Narrativa: A abordagem em evolução do White Estate reflete uma luta contínua para equilibrar a preservação do legado de Ellen White com a necessidade de precisão histórica e transparência.
- 2. Impacto na Pesquisa: A restrição inicial de acesso a certos documentos afetou a compreensão acadêmica e denominacional da teologia de Ellen White, levando a interpretações potencialmente incompletas ou imprecisas.
- 3. Desafios Hermenêuticos: A divulgação gradual de informações apresenta desafios hermenêuticos, exigindo uma reavaliação contínua de como os escritos de Ellen White são interpretados no contexto denominacional.
- 4. Tensão entre Preservação e Investigação: O White Estate continua a navegar a tensão entre preservar a reputação e o legado de Ellen White e permitir uma investigação acadêmica aberta e honesta.
- 5. Responsabilidade Denominacional: As ações do White Estate levantam questões sobre a responsabilidade das instituições denominacionais na gestão de informações históricas sensíveis.
O papel do White Estate na gestão das informações sobre a relação de Ellen White com a Apócrifa ilustra os desafios enfrentados por instituições denominacionais na era da pesquisa acadêmica moderna e da maior demanda por transparência. A evolução de sua abordagem reflete uma mudança mais ampla na forma como o adventismo lida com sua própria história e herança teológica.
A crescente abertura do White Estate em relação a estes documentos tem facilitado uma compreensão mais completa e nuançada do pensamento teológico de Ellen White. No entanto, também apresentou novos desafios para a igreja, forçando uma reavaliação de certas suposições sobre a teologia e a hermenêutica de Ellen White.
O papel do White Estate nesta questão destaca a complexidade de gerenciar um legado religioso significativo em um contexto de mudança. Sua jornada em direção a uma maior transparência e abertura acadêmica representa um desenvolvimento positivo, embora continue a apresentar desafios para a interpretação e aplicação dos escritos de Ellen White no adventismo contemporâneo.
Implicações Teológicas e Hermenêuticas
A descoberta e análise da relação de Ellen White com a Apócrifa têm profundas implicações teológicas e hermenêuticas para o adventismo. Estas descobertas desafiam muitas suposições tradicionais e abrem novas avenidas para a reflexão teológica.
Implicações Teológicas:
Natureza da Inspiração: A aceitação de Ellen White de partes da Apócrifa como inspiradas sugere uma compreensão mais ampla e fluida da inspiração divina. Isso desafia a visão tradicional adventista de um cânone estritamente definido. Korpman argumenta que o uso contínuo da Apócrifa por Ellen White indica que ela via esses textos como genuinamente inspirados, mesmo que em um nível diferente dos textos canônicos.
Autoridade Escriturística: A distinção de Ellen White entre o “livro padrão” (Bíblia canônica) e o “livro oculto” (Apócrifa) sugere uma visão hierárquica da autoridade escriturística. Isso pode ter implicações para como a igreja entende a autoridade de vários textos, incluindo os próprios escritos de Ellen White. Korpman observa que esta abordagem sugere um “espectro de autoridade” em vez de uma categorização binária de textos inspirados e não inspirados.
Revelação Progressiva: O uso contínuo da Apócrifa por Ellen White pode indicar uma crença na relevância contínua de textos antigos, sugerindo uma visão mais dinâmica da revelação divina. Korpman aponta que Ellen White frequentemente usava textos apócrifos para interpretar eventos contemporâneos e futuros, indicando uma crença na aplicabilidade contínua desses textos.
Doutrina do Sola Scriptura: A aceitação de textos apócrifos como parcialmente inspirados levanta questões sobre como o adventismo interpreta e aplica o princípio do Sola Scriptura. Korpman sugere que a abordagem de Ellen White pode indicar uma compreensão mais inclusiva deste princípio, onde “Escritura” pode abranger mais do que apenas o cânone protestante padrão.
Compreensão Profética: O uso de Ellen White de textos apócrifos, particularmente 2 Esdras, para interpretar profecias bíblicas sugere uma abordagem mais intertextual à interpretação profética. Isso pode ter implicações significativas para como o adventismo entende e interpreta profecias bíblicas.
Implicações Hermenêuticas:
- Interpretação Contextual: Essas descobertas enfatizam a importância de interpretar os escritos de Ellen White dentro de seu contexto histórico e teológico completo. Korpman argumenta que muitas interpretações anteriores dos escritos de Ellen White podem ter sido limitadas por não considerarem sua relação contínua com a Apócrifa.
- Reavaliação de Fontes: O uso da Apócrifa por Ellen White convida a uma reavaliação mais ampla das fontes que ela utilizou e como elas influenciaram seu pensamento teológico. Isso pode levar a novas insights sobre suas interpretações bíblicas e proféticas.
- Abordagem Intertextual: A integração de textos apócrifos em seus escritos sugere a necessidade de uma abordagem mais intertextual na interpretação dos escritos de Ellen White. Korpman demonstra como Ellen White frequentemente entrelaçava ideias de textos canônicos e apócrifos, criando um rico tapete de significado.
- Princípios de Seleção: O uso seletivo da Apócrifa por Ellen White levanta questões sobre os princípios que ela usou para discernir quais partes considerava inspiradas e relevantes. Isso pode oferecer insights sobre sua metodologia hermenêutica mais ampla.
- Hermenêutica Profética: O uso de Ellen White de textos apócrifos para interpretar profecias bíblicas sugere uma abordagem mais flexível à hermenêutica profética. Isso pode ter implicações significativas para como o adventismo aborda a interpretação profética.
Desafios para o Adventismo Contemporâneo:
1. Revisão Doutrinária: Estas descobertas podem necessitar uma revisão cuidadosa de certas posições doutrinárias, particularmente aquelas relacionadas à natureza da inspiração e ao cânone bíblico. Korpman sugere que isso pode levar a uma compreensão mais matizada da doutrina adventista.
2. Educação Teológica: Há uma necessidade de incorporar estas novas compreensões na educação teológica adventista, promovendo uma visão mais matizada da história denominacional e da teologia de Ellen White. Isso pode envolver a introdução de estudos sobre a Apócrifa em currículos teológicos adventistas.
3. Diálogo Ecumênico: A aceitação de Ellen White de partes da Apócrifa pode abrir novas avenidas para o diálogo com tradições cristãs que valorizam estes textos. Isso pode levar a um engajamento mais profundo com outras denominações cristãs.
4. Prática Devocional: Estas descobertas podem influenciar como os adventistas abordam sua prática devocional e estudo bíblico pessoal, potencialmente expandindo as fontes consideradas para inspiração espiritual.
5. Compreensão Histórica: A relação de Ellen White com a Apócrifa destaca a necessidade de uma compreensão mais profunda do contexto histórico do adventismo primitivo. Isso pode levar a uma apreciação mais rica da herança teológica adventista.
6. Tensão com Macabeus: Korpman destaca uma tensão particular entre o uso de Ellen White dos livros de Macabeus e a interpretação adventista tradicional da profecia de Daniel. Isso levanta questões complexas sobre como reconciliar diferentes interpretações proféticas.
7. Autoridade Contínua: O uso contínuo da Apócrifa por Ellen White ao longo de sua vida levanta questões sobre a natureza da autoridade contínua desses textos. Isso pode levar a discussões sobre o papel de textos extra-canônicos na formação da teologia adventista.
A relação de Ellen White com a Apócrifa apresenta tanto desafios quanto oportunidades para o adventismo contemporâneo. Ela convida a uma reavaliação cuidadosa de pressupostos teológicos e práticas hermenêuticas, ao mesmo tempo em que oferece possibilidades para um entendimento mais rico e nuançado da revelação divina e da história denominacional.
Korpman argumenta que estas descobertas têm o potencial de fomentar um adventismo mais reflexivo e teologicamente sofisticado, capaz de se envolver de maneira mais profunda com sua própria herança e com a comunidade cristã mais ampla. Ele sugere que isso pode levar a uma compreensão mais matizada da inspiração, onde textos fora do cânone tradicional podem ser reconhecidos como tendo valor espiritual significativo, mesmo que não no mesmo nível dos textos canônicos.
Finalmente, estas implicações convidam o adventismo a um diálogo mais profundo com sua própria história e com as complexidades da revelação divina. Elas desafiam a denominação a desenvolver uma teologia mais robusta e flexível, capaz de abordar as nuances da inspiração e canonicidade de uma maneira que honre tanto a tradição quanto a orientação contínua do Espírito Santo.
A Dissonância Adventista com Macabeus: Um Dilema Teológico e Histórico
A relação entre o adventismo, Ellen White e os livros de Macabeus representa um dos mais intrigantes e potencialmente controversos aspectos da teologia e historiografia adventista. Esta dissonância não é apenas uma questão de interpretação bíblica, mas um ponto crucial que toca o cerne da identidade adventista e sua compreensão profética.
Os livros de Macabeus, particularmente 1 e 2 Macabeus, ocupam uma posição única na história judaica e cristã. Eles narram eventos cruciais do período intertestamentário, incluindo a revolta dos Macabeus contra o domínio selêucida e a profanação e subsequente purificação do Templo por Judas Macabeu. Este último evento, conhecido como a restituição do serviço do Templo, é central para a compreensão judaica da festa de Hanucá e, mais significativamente para nossa discussão, tem sido interpretado por muitos estudiosos como o cumprimento histórico da profecia das 2300 tardes e manhãs mencionada em Daniel 8:14.
A interpretação adventista tradicional das 2300 tardes e manhãs, no entanto, diverge significativamente desta perspectiva histórica. O adventismo, emergindo do Grande Desapontamento de 1844, reinterpretou esta profecia não como um evento do passado, mas como uma predição que culminou na purificação do santuário celestial, marcando o início do juízo investigativo. Esta interpretação, fundamentada nas visões de Hiram Edson e elaborada por O.R.L. Crosier em 1845 e 1846, tornou-se um pilar da teologia adventista.
Aqui reside o paradoxo: Ellen White, cujos escritos e visões são fundamentais para a compreensão adventista da profecia, parece ter endossado e utilizado os livros de Macabeus em seus próprios escritos. Este fato, recentemente trazido à luz por pesquisas acadêmicas, coloca o adventismo diante de um dilema teológico significativo.
Se Ellen White considerava Macabeus como inspirado, ou pelo menos como uma fonte confiável de verdade espiritual e histórica, como pode o adventismo justificar a rejeição da narrativa macabaica em favor de uma interpretação que transpõe o cumprimento da profecia para quase dois milênios depois? Esta questão não é meramente acadêmica; ela toca o cerne da hermenêutica profética adventista e levanta questões fundamentais sobre a natureza da inspiração e a interpretação da história sagrada.
A utilização de Macabeus por Ellen White não foi casual ou isolada. Evidências sugerem que ela incorporou narrativas e temas dos livros de Macabeus em seus escritos, tratando-os com um grau de autoridade similar ao que ela concedia aos textos canônicos. Isso é particularmente notável em suas descrições de eventos históricos e em sua compreensão da intervenção divina na história humana.
Este uso de Macabeus por Ellen White cria uma tensão teológica significativa. Por um lado, temos a interpretação profética adventista tradicional, que vê as 2300 tardes e manhãs como culminando em 1844. Por outro, temos o aparente endosso de Ellen White a textos que oferecem uma explicação histórica alternativa para o cumprimento desta mesma profecia.
A resolução desta tensão não é simples. Ela exige uma reavaliação cuidadosa não apenas da hermenêutica profética adventista, mas também da compreensão adventista da história sagrada e da natureza da inspiração. Se aceitarmos que Ellen White via valor inspirado em Macabeus, somos forçados a considerar seriamente a possibilidade de que a profecia das 2300 tardes e manhãs possa ter múltiplos cumprimentos ou interpretações.
Esta perspectiva não é sem precedentes na tradição profética bíblica. Muitas profecias bíblicas são entendidas como tendo cumprimentos tanto imediatos quanto futuros. A possibilidade de que a profecia de Daniel possa ter um cumprimento histórico nos eventos narrados em Macabeus, bem como um cumprimento escatológico na compreensão adventista, oferece um caminho potencial para reconciliar estas visões aparentemente divergentes.
No entanto, tal reconciliação não vem sem desafios. Ela exigiria uma recalibração significativa da teologia adventista, particularmente em relação à sua compreensão do santuário e do juízo investigativo. Também levantaria questões sobre como interpretar outras profecias e sobre o papel da história na compreensão da revelação divina.
Além disso, esta dissonância destaca a complexidade da relação entre Ellen White, a tradição adventista e as fontes históricas. Se Ellen White estava disposta a incorporar insights de textos considerados não-canônicos pela tradição protestante, isso sugere uma abordagem mais fluida e inclusiva à revelação divina do que muitas vezes é reconhecido no adventismo contemporâneo.
A questão de Macabeus e sua relação com a profecia de Daniel não é apenas um exercício de exegese bíblica ou de interpretação histórica. É um convite para o adventismo reavaliar fundamentalmente sua abordagem à profecia, à história sagrada e à natureza da inspiração. É um chamado para uma teologia mais nuançada e historicamente informada, que possa abraçar a complexidade da revelação divina sem sacrificar os insights únicos da tradição adventista.
Em última análise, a dissonância entre a aparente aceitação de Macabeus por Ellen White e a rejeição adventista de sua narrativa como cumprimento profético nos convida a uma reflexão mais profunda sobre como entendemos a interação entre história, profecia e revelação contínua. Ela nos desafia a considerar que a verdade divina pode ser mais multifacetada e dinâmica do que nossas interpretações muitas vezes permitem.
Conforme o adventismo avança no século XXI, enfrentando desafios tanto internos quanto externos, a resolução desta dissonância pode se provar crucial não apenas para sua autocompreensão teológica, mas também para sua capacidade de se engajar de maneira significativa com o mundo mais amplo e com outras tradições de fé. O caminho à frente exigirá coragem intelectual, honestidade teológica e uma disposição para reexaminar pressupostos longamente mantidos à luz de novas evidências e insights.
A jornada para reconciliar a visão de Ellen White sobre Macabeus com a teologia profética adventista não será fácil, mas tem o potencial de levar a uma compreensão mais rica e matizada da revelação divina e do papel do adventismo na história da salvação. É um desafio que convida o adventismo não apenas a olhar para seu passado, mas a se reimaginar para o futuro, mantendo-se fiel aos seus insights fundamentais enquanto se abre para uma compreensão mais ampla e profunda dos caminhos de Deus na história humana.
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Sobre o Autor da Tese Matthew J. Korpman
Visite o Site Oficial de Matthew Aqui: http://www.matthewjkorpman.com/
Matthew J. Korpman é um jovem erudito bíblico, pregador itinerante e provocador teológico. Membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia, já atuou como pastor estudantil e capelão dentro da denominação, além de ter trabalhado em capacidades ecumênicas com outras igrejas, incluindo a Igreja Episcopal, onde serviu como homilista em várias paróquias. Korpman possui vasta experiência prática na vida eclesiástica e também acadêmica, tendo sido Assistente de Ensino por quatro anos na Richards Divinity School da Universidade La Sierra, onde lecionou em diversas disciplinas teológicas.
Atualmente, ele está em busca de um doutorado em Estudos Bíblicos, após ter concluído recentemente o mestrado em Religião (com foco em Judaísmo do Segundo Templo) na Yale Divinity School, onde estudou sob a orientação de renomados estudiosos bíblicos como John J. Collins, Harold Attridge e Gregory Mobley, além de teólogos como Miroslav Volf e S. Mark Heim. Seu trabalho incluiu, entre outros, a reinterpretação dos capítulos iniciais e finais do livro de Jó.
Korpman já tem várias publicações acadêmicas, incluindo artigos na prestigiada *Journal for the Study of the Old Testament* e um capítulo no futuro *Oxford Handbook of the Apocrypha*. Ele é membro regular da Society of Biblical Literature e da Adventist Society for Religious Studies, apresentando frequentemente novas pesquisas em suas reuniões.
Além disso, ele se engaja regularmente em plataformas populares como Patheos.com e revistas online para promover estudos bíblicos e teologia ao público não acadêmico. Tendo crescido em um ambiente próximo ao fundamentalismo e ao conservadorismo cristão conspiratório, Korpman tem uma preocupação pastoral em conectar a igreja e a academia de maneiras que ampliem os horizontes e as visões de mundo de ambos os lados do espectro ideológico.
Ele possui três Bacharelados em Artes (BA) em Teologia, Arqueologia e Filosofia, além de um Bacharelado em Belas Artes (BFA) em Roteiro, todos pela Universidade La Sierra. Formou-se após cinco anos com um GPA de 3,98 e completou uma tese de graduação de 50.000 palavras, examinando o papel dos Apócrifos no adventismo e no protestantismo primitivo. Sua tese, que está sendo publicada gradualmente em artigos e livros, o coloca como uma das principais autoridades no mundo sobre o tema.
Korpman também viajou extensivamente pelo mundo, desde o Peru até o Japão, e passou um tempo no Oriente Médio, onde estudou hebraico em Israel e participou de uma escavação arqueológica na Jordânia como parte do Projeto Madaba Plains. Nascido no Texas e estudando em Connecticut, ele se orgulha de chamar a Califórnia de sua casa.